Não sei dizer quando começou. Talvez ela sempre estivesse lá e eu não tivesse reparado antes. O que mais me incomoda nesta história é que não sei como ela começou e não sei como ela terminou... Ou se vai terminar. É como começar a assistir um filme na TV durante a madrugada: você só estava mudando de canal e parou ali por causa de uma cena interessante, o enredo é intrigante, você continua assistindo, mas dorme no primeiro comercial que vê, e depois disso... O filme acabou. E você fica ali, deitado, esperando um dia saber qual é o desfecho daquela história que nem sabe o nome.
Eu trabalhei até mais tarde naquele dia. Já devia ter passado das oito. Peguei minha mochila e saí do prédio. Não foi um dia ruim, nem cansativo, apesar de ter trabalhado mais. Minha vida era tão entediante que já não sentia mais o peso do trabalho, ou pelo menos tinha aprendido a lidar muito bem com ele. Peguei a chave do carro e caminhei até ele, que estava parado a duas quadras dali, onde eu costumava deixar mesmo.
No caminho, havia um beco por onde eu sempre passava, não era muito longo. Dois prédios e uma parede formavam as linhas do lugar, uma mais longa, na horizontal, e outra menor, em vertical, no meio da horizontal. Assim, o beco era um T de cabeça larga e corpo pequeno. Não havia iluminação ali, toda a luz vinha das janelas dos apartamentos. Apesar da pouca iluminação, eu podia ver algumas decorações penduradas nas janelas. Eram objetos típicos da Ásia, alguns pendurados do lado de fora da janela para cantar ao vento. Não era de se surpreender, havia um bairro de imigrantes chineses bem próximo dali.
Eu entrei no lado vertical do beco e caminhei até o fim, como sempre fazia. Foi quando a notei pela primeira vez. Enquanto dobrava à esquerda, percebi a sombra que saía de uma das lojinhas do beco e se esgueirava até a parede branca. Não foi nada de especial, era só uma sombra de um homem numa parede. Segui meu caminho normalmente. No dia seguinte, saí do trabalho no meu horário normal, e vi a sombra de novo, mas não vi tinha visto nada de errado de novo, apenas achei coincidência e segui o caminho. Durante toda aquela semana, toda vez que eu passava por ali, não importava o horário, a sombra estava lá.
Talvez tenha sido na segunda semana que comecei a me incomodar com a presença daquilo, quando eu passei a me deitar na cama e pensar nela. A quem pertencia aquela sombra? A silhueta sugeria que era um homem, nada mais do que isso. Não havia um traço que pudesse distinguir de outras silhuetas. Na verdade, a única coisa que me fazia pensar que era um homem era a falta de cabelo na sombra. Quando me dei conta disso, concluí que era apenas um manequim. Fazia todo sentido, afinal, a sombra nunca se movia.
Mas ainda havia algo ali, e como um sinal de Deus que não te deixa perder a fé, enquanto eu olhava para a sombra com a certeza absoluta de que era apenas um boneco, praticamente ignorando todos meus sentimentos de desconforto, um elemento a mais entrou no jogo: a música. Eram trompetes, sax ou qualquer instrumento de sopro desse tipo. A qualidade do som não era das melhores, parecia vir de um aparelho de som velho que estava dentro da loja. Na hora, não dei importância, mas a música ecoou por todo o beco, e eu de fato ouvi até sair do beco. Mas quando coloquei a cabeça no travesseiro, no meio da escuridão e do silêncio, ouvi a música em minha cabeça. Eu não dormi naquela noite. A música era familiar, e não saber seu nome ou quem era o artista me incomodou. Na verdade, não incomodou, me atormentou. Demorei para cair no sono, e no trabalho, fiquei cantarolando aquele trecho em minha cabeça o dia inteiro.
Eu já não aguentava mais. Nunca, em toda minha vida, uma música grudou tanto na minha cabeça como aquela. Não houve um só momento daquele dia em que a música não tocava na minha cabeça. Eu estava prestes a surtar, e foi praticamente isso que aconteceu. Aquela música... A maldita música me deixou tão estressado que me deu coragem.
Naquele mesmo dia, saí do trabalho, com os trompetes cantando em minha cabeça, e andei com passos firmes e acelerados, furioso, até o beco. Não estava mais simplesmente passando por ali. Pela primeira vez, eu estava de fato indo para o beco. Eu entraria na loja e perguntaria que música era aquela, porque se era pra ser atormentado por algo, eu gostaria pelo menos de saber o que era.
A música ecoava pelo beco novamente, o mesmo trecho. Caminhei até a loja a passos largos. A sombra estava na parede novamente, mas quando já estava bem próximo da loja, a sombra correu para dentro e sumiu da parede. Eu gritei algo para que parasse, mas fui ignorado. Corri atrás dela e de repente estava dentro da loja.
Eu fiquei ali, parado, sem saber pra onde ir e até mesmo olhar. Nas paredes havia diversos objetos, desde eletrônicos até produtos de limpeza. Havia uma prateleira no meio da pequena loja, cheia de doces, salgadinhos e outras comidas fáceis e rápidas de se comer. Enquanto voltava aos poucos ao mundo, percebi que estava parado exatamente onde devia ficar o dono da sombra. Não havia manequim algum na loja. Meu coração tinha disparado tanto que demorei para perceber a garotinha atrás do balcão.
Ela devia ter no máximo nove anos. Pequena demais para ser a dona da sombra e certamente não tinha a mesma silhueta, principalmente por conta do cabelo longo. Ela me encarava com um olhar assustado, escondendo um pouco do rosto atrás da revista em suas mãos. Provavelmente, eu dera um baita susto nela ao entrar na loja correndo e parando assim tão de repente. Acenei e disfarcei, fingindo que estava interessado em um dos doces da prateleira. A música continuava tocando, vinha de um rádio pequeno, logo acima da cabeça da menina. Desesperado para tirar aquela coisa da minha cabeça, perguntei o que ela estava ouvindo. Ela me disse um número: 99.7. Tentei explicar que queria saber o nome da música, mas ela me interrompeu e pediu para que eu fosse embora. Ela parecia saber quem eu era e, pior que isso, parecia ter motivos para ter medo de mim. Ela não estava assustada só pela forma como entrei na loja.
"Seu pai está?", perguntei da forma mais gentil que consegui, mas ela não respondeu, apenas se afastou um pouco do balcão, quase encostando as costas na parede. "Seu irm...?", e antes que eu pudesse terminar a pergunta, ela começou a gritar algo que não entendi. Segundos depois uma mulher bem baixinha surgiu gritando, com uma vassoura na mão e ameaçando me bater com ela. Ela gritava algo em chinês e me forçou a sair da loja, espantando-me como se fosse um cachorro intruso. Tanto ela, quanto a menina, choravam muito. Tentei me explicar e ela ameaçou me bater de novo. Ela se calou e tudo que sobrou para se ouvir foram os trompetes da música que continuava a tocar. Quando fiz menção de falar algo, ela finalmente falou português. Assim como a menina, ela me disse um número: 190. Ela repetia o número diversas fezes com entonação de pergunta. Entendi o recado e recuei.
Dei mais alguns passos para trás e tomei meu rumo, olhando para trás constantemente, mas ninguém me seguiu, apenas a música... A maldita música. Foi naquela noite que decidi me afastar daquele lugar.
Passaram-se alguns dias e a música havia desaparecido da minha cabeça, foi assim, de repente. Nas primeiras semanas não parava de rever a imagem da sombra correndo. Assim como em filmes policiais, em que os detetives rebobinam a fita várias vezes até achar algo relevante na imagem, eu fazia o mesmo com o que tinha gravado na mente. Por que ela correu? Eu não falei nem fiz nada que pudesse assustar o dono da sombra. Ela sabia que eu estava indo pra lá. Foi quando comecei a pensar mais claramente e me perguntei: Por que eu estava ali? Não era preciso passar pelo beco, o caminho não ficava mais curto ao passar por ali e até hoje não sei por que passei a andar por ali. Assim como todos os fatos presentes nessa história, eu não sei por que isso aconteceu nem quando aconteceu. Então, concluí que devia ter um motivo para eu estar lá.
Eram dezenove horas quando passei pelo beco vazio. Sem música, sem sombra. No dia seguinte passei por lá novamente. Mais uma vez, sem música nem sombra. Foram várias e várias vezes a mesma coisa, cheguei até pensar em voltar a entrar na loja, mas o medo do que era certo me assustava mais do que o desconhecido. Não queria causar problemas para uma família, principalmente com uma que me odiava sem motivo aparente.
Depois de passar por ali tantas vezes, simplesmente esqueci por que estava fazendo aquele caminho. Foram-se meses, talvez mais de um ano, sem nem lembrar de toda essa história. Eu estava no modo automático de novo. E apenas alguns dias atrás, essa história voltou a me assombrar enquanto eu dormia.
Foi um sonho terrível. Alguém tentava se aproximar de mim, e eu tentava me aproximar também, mas alguma coisa nos puxava para trás, uma força sem explicação. Então eu acordei. Minhas roupas e lençóis completamente molhados pelo meu suor, meus músculos estavam tensos, como se estivessem tentando alcançar a pessoa em meu sonho. Meu corpo não se movia, mas meus olhos abertos puderam olhar para frente. A porta do quarto estava aberta. Tudo que via do lado de fora era a parede do corredor, mas lentamente, uma imagem escura surgiu, até finalmente ver toda a sombra cobrindo parte da parede. Eu tentei me mexer, gritar e correr, mas nada aconteceu. Só pude ficar ali, olhando e ouvindo. Foi a primeira e única vez que ela falou comigo, mas eu não pude entender. Mesmo sem olhos, eu sabia que ela olhava diretamente para mim. E quando terminou seu discurso incompreensível, recuou e sumiu no quarto ao lado.
Desde então, a sombra sem dono me visita de tempos em tempos e me observa enquanto durmo. Eu não sei o que vai acontecer, quando vai acontecer, nem se vai acontecer algo comigo. Eu queria acreditar que estou delirando, pois na noite passada ela fez uma nova amiga. Eu demorei um pouco para reconhecer, mas enfim vi que era minha silhueta que estava ali de pé ao lado da sombra, enquanto eu continuava deitado em minha cama.