Quis acreditar que, se eu fechasse os olhos, ao abri-los tudo estaria normal na paz que tanto anseio. Como doeu ver onde eu estava.
O impacto foi duro e extremamente doloroso. Mas Ariel não se importou com isso, pois havia algo em sua alma que doía mais. Se enrodilhou ali e se deixou quieta, no fundo daquele buraco.
A dor pungente a atingiu e ela se apertou mais em si mesma, o soluço emergindo poderoso. Por muitas e muitas horas se lamentou, se recriminando por ter se deixado enganar, pois agora via que fora isso que acontecera.
Quando o soluço diminuiu e conseguiu um pouco de controle sobre sua alma, estendeu lentamente sua consciência a partir de onde estava, esticando-se pela terra como o toque de uma brisa. Animais e plantas sentiu, como sentiu de longe as pessoas e os homens. Subitamente se pegou envergonhada e se retirou.
Era o segundo dia de sua queda quando ela, finalmente, se mexeu na cratera que fizera de esconderijo.
Devagar se ergueu dentro da cratera em que estava, sentindo a terra, plantas e pedriscos correrem por sua pele e roupas e caírem de volta ao chão. Deixou que essa sensação permanecesse por mais algum tempo, sentindo o seu peso se empurrando contra a terra. Era um sentimento novo, sentir o peso assim.
Com um certo peso observou em volta, anjos e anjos, em variadas formas assumidas despencando dos céus, alguns como colunas de luz, já não tão vivas quanto antes, outros muitos em forma humana, enquanto que a grande maioria se mostrava como mantos de um branco fosco. Alguns vinham resignados, outros impactavam a terra com fragor, como se para mostrarem o quanto estavam desgostosos com isso, tal como ela em sua queda. Suspirou sentida, abrindo as asas e alongando com lentidão o corpo, sentindo aquela dimensão extremamente pesada e malcheirosa.
Devagar subiu para a borda da sua cratera de impacto e olhou para longe, se negando a olhar para o céu, ou ao menos, de lhe prestar atenção.
Ao longe, para o nordeste, viu as ruinas de uma cidade, que devia ter sido muito grande em seus dias de glória, à frente de um grosso ajuntamento de montanhas de faces enegrecidas, como se tivessem sido queimadas até seus ossos, no meio de uma vasta planície morta. Aguçou seus olhos, e viu sobre uma das poucas torretas ainda de pé um grande e belo dragão negro[1], que parecia observar com interesse o triste espetáculo.
Deu de ombros, vendo o quanto aquela visão era tacanha e extremamente pobre, como todo aquele planeta[2].
Como se estivesse indiferente a todo aquele pesadelo que rasgava o céu fez os cabelos assumirem uma cor negro-azulada, enquanto os olhos tornava totalmente negros, onde a íris desaparecia, e dando à esclera uma tonalidade tão branca e pura quanto uma louça, a boca carnuda e vermelha.
Com tristeza examinou rapidamente as asas, brancas como uma saudade. Dobrou-as e as fez desaparecer de encontro às costas.
Por longo tempo em silêncio ficou cismando sobre o mundo, que agora teria que aprender a chamar de lar. Sabia dos nefelins, e sorriu sobre eles.
Suspirou, vendo o quanto estava enfraquecida.
Aquietou a mente e devagar abriu os braços e as asas, os olhos fechados, sentindo o pulso do mundo. Havia como que vozes sutis no ar, recheado de muitos lamentos, o que a espantou, obrigando-a a abrir os olhos. Cismou sobre isso, se dizendo que não estava mais nos reinos de cima e muito menos em Netradir Vall, a Cidade Branca dos anjos. Ali, tudo era mais pesado e cheio de agonias e lamentos.
Fechou novamente os olhos, mas de novo viu que seria difícil, pois havia um peso ali com o qual não estava acostumada. Tudo ali era denso demais. Então os abriu e alterou um pouco o foco até ver as fitas de luz de variadas cores que desciam do amplo firmamento, como cordões que ligavam tudo o que vive na terra ao céu. Respirou fundo e demorado, se deixando esquecida na luz que jorrava sobre si. Estranhou não se sentir revigorada e forte como seria normal que acontecesse. O processo de se alimentar ali era muito estranho e difícil.
Resignada aceitou esse aspecto daquela criação. Foi um processo longo e demorado, até que, lá pelo meio da tarde, finalmente se sentiu um pouco mais saciada.
Inspirou demoradamente e saiu de sua concentração, vendo um casal de dragões de ouro, muito alto no céu, viajando em tocante paz.
Tirou a atenção deles no momento que ouviu um silvo reboando pelo céu em meio às trombetas que se espalhavam pelo firmamento, como uma sirene, como um alerta.
Ariel girou a cabeça no exato momento de vê-la se precipitando para a terra.
Sorriu satisfeita.
Ao menos, por enquanto, por algum momento, não ficaria sozinha.
Quando NuvemEscura atingiu a terra o ar pareceu se enovelar e se perder, a concussão do impacto viajando veloz no meio da floresta onde se dera, entre ela e o ajuntamento de montanhas queimadas no meio da planície sem vida. Ariel seguiu a onda de choque correndo pelo meio das árvores, dobrando e partindo as mais próximas com fúria, até as últimas apenas serem bafejadas por uma brisa morna.
Sem se mover aguardou em silêncio, os olhos perscrutando o alto das árvores. Aguardou pouco tempo, pois logo a viu assomar acima do dossel colorido, pequenina contra o flanco das montanhas ao longe.
Percebeu quando ela a viu, e com um ruflar das asas brancas como um lírio, num átimo estava perto de si, flutuando sobre o monte, mostrando-se feliz por ter alguém em seus primeiros momentos da queda.
- Então aqui estamos – ela foi logo cumprimentando, descendo ao seu lado, um sorriso amigável nos lábios, os olhos passando rápida e discretamente pela cratera que Ariel abrira no monte.
- Sim, minha amiga, aqui estamos. As vigilantes mais novinhas do pedaço. Não é como esperávamos, não é mesmo?
- Temo que fomos usadas... – lamentou, os olhos passeando pelos horizontes, de quando em quando seguindo a queda de algum anjo.
- Parece que sim, NuvemEscura. Mas, se pensarmos bem, acabo achando que não: a decisão final sempre esteve conosco, não esteve?
A outra demiana a observou de lado, os olhos mostrando que estava cismando.
- Gostei da forma que se deu. Ficou muito bonita – elogiou. – Uma bela vigilante. Sabe que é uma boa ideia? – sorriu feliz.
Com o rosto luminoso fez os cabelos brancos se tornarem aboboras, de um tom não muito intenso, enquanto os olhos ela pintou de um forte mel, a íris de um negro suave parecendo nele se perder, a esclera branca como um floco de neve, a boca grande e feliz.
Como se estivesse desejosa de esquecer tudo o que acontecera com um toque tornou a armadura cinza de grande palidez, fazendo as proteções em couro. Só a espada, Hádna, permaneceu como uma esmeralda, escondida na grossa bainha escura presa na cintura pelo largo cinturão.
- É, ficou bem também – elogiou Ariel por sua vez.
- Obrigada – riu NuvemEscura, mantendo a atenção no novo mundo. – E sim, essa é uma verdade, quanto a de termos sido usadas. Estranho aqui, héim? Eu já tinha vindo aqui uma vez, e já tinha achado esquisito demais esse lugar. Agora, estando aqui, vejo que é... terrível. Pesado, feio e escuro demais...
Por mais que tenha se esforçado algo se insinuou em sua mente, nas imagens de Netradir Vall[3], agora na inatingível sexta dimensão. Os grandes edifícios brancos no ar suave e fluído, os rios borbulhantes descendo as montanhas, tornando o ar mágico e poderoso. Talvez fosse das inúmeras pontes dos mais variados tipos, todas em pedra, sobre as cachoeiras ou rios que sentiria mais saudade, porque era onde gostava de passar o tempo. E o que poderia dizer dos amplos e avarandados terraços de colunas brancas? Com força ignorou e lançou para o fundo de sua alma a terrível saudade que, sabia, sempre estaria ali, à espreita de um momento de descuido. Teria que aprender a lidar com isso, cismou.
- Não podemos pensar nisso, não podemos deixar a saudade vingar – disse num murmúrio sentido, a voz parecendo fria e distante.
- Está certa quanto a isso. Bem, e quanto a você, já decidiu como vai ser, Ariel? Vai descer, mergulhar na experiência? Já escolheu se vai ser uma pessoa ou uma humana?
- Não, ainda não. E você?
- Já! Quando estava na batalha, os sinais do que iria acontecer estavam claros demais. Tive tempo para pensar.
- E o que vai ser?
- Sei que não terei mais como sair daqui, pois aqui estou presa por um tempo que não consegui medir, nem mesmo quando era uma demiana. Não quero, Ariel, ficar presa em minhas lembranças, remoendo isso sem cessar. Por isso, vou me afundar nesse planeta. Porém, me recuso a descer no meio desses humanos, nem que passe a eternidade.
- Deixe desse ódio pelos humanos. Foi isso que nos derrubou.
- Ora, se tornou amiga deles?
- Não, NuvemEscura, apenas tive tempo para ver esse lugar, seu peso, que para eles deve ser ainda mais terrível. Então, vida neles é o que finalmente estou vendo. Estou em paz com eles – declarou com tranquilidade.
NuvemEscura a observou com cuidado.
- Mas, você desceu, pelo que vi, somente um pouco antes de mim. O que a fez pensar assim?
- Eu toquei a vida aqui, não mais como demiana, e sim como alguém que daqui não tem como sair.
- Sempre te considerei muito – falou com simplicidade. – Se você pensa assim, vou estudar mais a respeito – sorriu. – Mas, ainda me recuso a descer como eles. Nem poder eles têm...
- Algum coisa eles devem ter, e deve ser algo incrível. Afinal, o UM tem muito apreço por eles...
- Bichinhos de estimação – riu NuvemEscura. – Mas, voltando ao assunto, eu estava pensando em outra criatura...
- Uma onça?
- Não!
- Uma minhoca...
- Também não... – riu, imaginando se ela iria parar em algum momento.
- Uma macaquinha de bunda de fora? – riu divertida.
- Nossa, claro que não... – riu também.
- Sabe que posso ficar nisso dias e dias, não é mesmo? – riu satisfeita.
- Infelizmente eu sei. Te conheço bem... Nem como vigilante você mudou, ao menos nisso – sorriu, tentando não deixar transparecer uma pontada de tristeza.
- Tudo bem, uma pessoa[4] então – disse apressada, para espantar a tristeza que viu se insinuar na amiga.
- Isso, uma pessoa – confirmou. – Tem alguns de poderes bens legais dentre eles.
- É a sua cara. Já tem na cabeça como qual pessoa vai encarnar?
- Sei lá... Acho que em uma manira-ellos[5]... Gosto da rapidez, você sabe... E elas são belíssimas.
Ariel ficou observando a amiga por algum tempo. Teve que concordar que era uma boa escolha.
- Acho uma boa escolha. Afinal, os ellos e as maniras-ellos são os que guardam mais proximidade e afinidade com as demianas e anjos, quer dizer, com os vigilantes e as vigilantes.
- Pois é, não é? – concordou feliz, abrindo um enorme e luminoso sorriso
Ariel ficou pesando a alma da amiga. Mesmo recém caída ali estava todo o poder da alma dela.
- Os arcanjos vão te ajudar nisso? Quer dizer, vão te ajudar a encarnar? Eles estão muito apressados em diminuírem a população de caídos aqui - contou.
- Se vão ajudar não sei, mas não preciso deles - sorriu confiante. – Então, o que acha do meu plano? – perguntou, o sorriso moleque se ampliando no rosto.
- Pensando melhor, acho que é um bom plano. No entanto, pessoa sim, mas não te aconselho nefelin – avisou com lentidão, para que o que dissera se fixasse na amiga. – Acredito que eles não irão ter muita paz nesse mundo.
– É, acho que você está certa quanto a evitar ser nefelin. Certeza quanto a não escolher agora, Ariel? A gente poderia descer juntas e...
- Acho que não, minha amiga. Eu era demiana – sussurrou sentindo um enorme peso no coração, que logo espantou para longe de sua alma. – Agora, uma vigilante eu sou, e vigilante estarei aqui – falou, após ver que não conseguia se definir sobre como as coisas deveriam ser. Mas, sabia que não tinha pressa. - Confesso que estou desanimada até para pensar nisso. Estou um pouco abatida. Sei que vou me recuperar, mas sei também que vou levar algum tempo ainda.
- Pelo seu jeito, acho que nem pessoa ou humana, não é mesmo? – falou, observando suas feições com atenção.
- Não, acho que não quero. Nem demônio, nem humana, nem pessoa, ou nefelin. Sou uma vigilante, e não desejo abrir mão disso. Não por enquanto, e acho que não por um largo período de tempo.
- Eu já sabia disso.
Então NuvemEscura parou, os olhos estudando Ariel, que a observou intrigada.
- Há algo errado, NuvemEscura?
- Apenas um pensamento – sussurrou, como se estivesse tentando se decidir sobre algo.
Mostrando ter se decidido tirou o cinturão com a espada e as esticou para Ariel.
- Pode protegê-la? – pediu, oferecendo-a para a amiga. – Quero que fique com ela...
- E se eu me afeiçoar a ela? – perguntou, após um breve momento de indecisão, tentando imaginar por quanto tempo ela estaria pedindo que a mantivesse consigo, antes de devolvê-la, se tal possibilidade se apresentasse, isto é, desde que ela conseguisse encontrar a amiga encarnada.
Ariel já tinha ouvido isso, dizendo que alguns poucos vigilantes que se decidiam a deixar a condição de anjo, mesmo os caídos, ofereciam suas espadas para algum amigo, preocupados para que elas não desaparecessem.
- Não, Ariel. Eu não a vou querer de volta. É sua, se aceitar. Não quero que ela desapareça. Meu tempo com ela acaba aqui, mas não quero tomar a energia que ela é.
Ariel a observou novamente, conferindo o quanto era bela, e se lembrando da honradez com que fora posta em ação inúmeras vezes. Então, em silêncio a recolheu. Sob os olhos de despedida de NuvemEscura a instalou às costas, deixando que sua energia e a energia que nela havia se misturassem.
- Obrigada! Vou cuidar bem dela.
- Sei que vai, e sou eu que agradeço. Bem, acho então que a gente vai acabar se encontrando por aí, não é mesmo? – falou desfraldando suas asas. – Se se encontrar com alguma manira-ellos dê uma boa olhada, porque pode ser eu.
- Sem dúvida, minha amiga. Se precisar de mim, sabe como me chamar. Em todo o caso, sabe que vou te procurar, não sabe? – sorriu.
- Conto com isso, Ariel – sorriu intensamente feliz. – Olha, sei que vou me esquecer, e é isso que eu quero, afinal. Mas, ... você mora no meu coração. Vou me esforçar em não me esquecer de você. No entanto, mesmo que eu me esqueça, me chame, se precisar de mim, esteja eu como estiver... – sorriu se elevando suavemente no ar.
Ariel seguiu seus movimentos. Havia aquele sorriso cativante, e então o giro completo no ar, se pondo de frente para o horizonte, e a batida suave e pensativa das asas, levando o que era para dentro do turbilhão do mundo que, sabia, se tornara sua prisão, mesmo que aprendesse com o tempo a chamar de lar. Mas, havia algo em NuvemEscura que sempre a fazia sorrir: ela sempre teve uma leveza com o trato das coisas, por mais pesadas e estressantes que pudessem ser e, em alguns momentos, pensando muito pouco sobre que consequências poderiam ter. A felicidade lhe parecia natural, e era muito cativante.
- E lá vai ela, aparentemente feliz, como se estivesse pronta para uma nova aventura...
Sua mente parou, abandonada no sabor daquelas palavras, cismando se sua amiga não seria uma sábia. Enquanto se deixava pensando assim tirou sua espada da cintura e a instalou com a outra, formando um "X" às costas.
> Uma nova aventura... – sussurrou para a sua alma.
[1] [1] Este é um dragão de porte grande e muito majestoso, além de ser muito dócil e amável. Para maiores informações sobre essas magníficas criaturas, vide o ANEXO, ao final deste livro.
[2] Pela descrição, tudo leva a crer tratar-se, o local da queda de Ariel, de um dos montes Amorin, talvez o mais ao ocidente, na nascente do rio Filas Tenebroso.
[3] Cidade dos anjos localizada na sexta dimensão (*).
[4] (*)
[5] No ANEXO, ao final deste livro, há uma relação de espécies de pessoas, ao menos das que aqui aparecem.