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Chapter 21 - A GRANDE PERDA DO DEMÔNIO

Olhei nos olhos do demônio, depois que todos se foram. Com o coração apertado chorei, porque tive pena dele.

Os dois poderosos exércitos se chocaram num impacto formidável, tanto na terra quanto no ar. A terra parecia movediça tão grande era o número de guerreiros, e o céu parecia tomado de fumaça de algum imenso incêndio nalgum lugar do sol.

Com muito custo o exército dos danatuás foi prevalecendo, apesar da luta desesperada dos thianahus que, sem forças para suportarem a fúria indignada, acabaram se dispersando dentro da cidade, com o maior contingente se aglomerando em torno da porta do sol. No céu, batidos pelas harpias e pelas flechas, os condores e uns poucos mantas iam diminuindo em quantidade.

De casa em casa, de ruela em ruela a luta foi penosamente se desenvolvendo, com a batalha mais encarniçada sendo travada em volta do portal. A luta intensificava-se e tornava-se ainda mais sangrenta. Armas na terra e garras no céu estraçalhavam e cortavam, imobilizando e destruindo. Perdas imensas dos dois lados. O exército dos danatuás esmagava a resistência, fazendo crer que a guerra se aproximava do fim.

Mas essa sensação desvaneceu-se quando, vindos dos lados do lago, distante mais de duas léguas e meia da cidade, como imensas jangadas no céu avistaram-se condores majestosos, voando tão velozes quanto várias dezenas de sombras e mantas que os acompanhavam.

As imensas harpias, que haviam tomado aqueles céus, se voltaram para dar combate aos que chegavam, deixando à mostra toda sua força, toda sua raiva e poder. Com tamanha violência se chocaram contra os condores e contra os voadores, que os sombras estacaram surpresos, porque em nenhum momento acreditaram que haveria algum ser neste planeta que os pudesse confrontar com tamanha vontade, ainda mais que os pudesse destruir.

Reagrupados e mais cautelosos atacaram, pois viam que, apesar de serem guerreiras formidáveis, as harpias eram poucas e estavam exaustas. Logo conseguiriam sobrepujá-las, devido principalmente ao seu grande número.

GarraDeLua, a harpia rainha, piou nervosa e imponente ao ver a quantidade monstruosa de condores, sombras e mantas que se fechavam em torno delas. Num esforço extremo comandou uma batalha desesperada.

Percebendo o perigo que as harpias corriam, mensageiros velozes, tornados ventos furiosos, foram despachados para as encostas das montanhas, chamando em seu socorro as coris-caririn que, com vários guerreiros humanos, combatiam thianahus e sombras que haviam tentado atacar os danatuás pelos flancos.

Eram aves pequenas e ágeis as que chegaram. As coris-caririn atacavam em bandos, estraçalhando os sombras e mantas como se fossem panos rotos, fazendo-os drapejar por alguns instantes como lenços velhos abandonados no ar antes de se esfumaçarem e sumirem. Aterrorizados, os sombras e mantas tentavam se proteger dos pássaros, sem muito sucesso. Urros e silvos sinistros foram emitidos, e em resposta grande quantidade de voadores surgiram de poços profundos no chão da cidade e de buracos nas encostas das montanhas. Em dado momento seu número novamente ameaçava sobrepujar perigosamente as harpias e as coris-caririns. A pesada nuvem de seres hediondos começou a girar, procurando cercar as aves, e não havia como o exército da terra auxiliar na batalha que se desenrolava no céu porque o combate na terra estava exigindo o máximo do exército.

Então, surgindo inesperadamente, coris-caririns vestidas do negror da noite, chamadas reverentemente de coris-negras, com o dobro do tamanho de uma coris-caririn normal, atacaram com extrema violência os voadores. O poder e a fúria delas assombraram sobremaneira os sombras e mantas que não viram como sobrepujar essas novas combatentes, pois que, para destruir apenas uma delas era exigido o envolvimento de grande número deles. Muitos, apavorados com o ataque mortal, passaram pelo portal e se foram em desespero para seu mundo. Mas, mesmo com as formidáveis guerreiras negras, a batalha nos céus estava equilibrada, tal como a batalha no chão seco.

Finalmente os thianahus, mantas e sombras recuaram e formaram um anel em torno do portal. A guerra diminuía de intensidade na terra e no céu.

Foi um pajé, uma feiticeira que deu o alerta: milhares de thianahus e muitas centenas de grandes sombras, acantonados no litoral do outro oceano mais a oeste, estavam subindo as montanhas em socorro dos seus. Os voadores, ela disse, logo chegariam, e iriam abalar a certeza da vitória. E eles, poucas horas depois, contariam com a chegada dos thianahus, que vinham a cavaleiro de grandes condores.

Anu observou a feiticeira, cismando o que estariam eles fazendo, longe da guerra. Um frio percorreu sua coluna, temendo que tivessem caído numa terrível armadilha.

Então chamou à sua presença o líder dos revoltosos e o demônio Otempele.

O líder dos revoltosos então despachou vários emissários para o interior, insuflando em socorro homens dos povos subjugados pelos thianahus.

Com urros violentos, tal qual uma poderosa onda, o exército danatuá empenhou-se mais fortemente, empurrando com ferocidade os thianahus e seus aliados de encontro ao portal. A luta cresceu em fúria. Os defensores se empenharam furiosamente na batalha ao verem que o objetivo dos povos dos baixios era a destruição do portal, o que nunca poderiam permitir.

Apesar de todo empenho o avanço dos danatuás em direção ao portal se tornou muito lento, ainda mais com a preocupação com o que poderia surgir às suas costas.

Então se ouviram ordens soando no ar, apanhando todos de surpresa e enchendo os danatuás de ânimo. Em meio à peleja grandes divisões do exército danatuá foram se separando, deixando a refrega do portal. Sob gritos e urros todos viram o exército se partindo em dois. O menor deles, tendo à frente a bandeira azul de Otempele, um dos conselheiros mais honrados e aguerridos, partiu para o leste, de onde se esperava surgir o reforço dos demônios.

Otempele, demônio jurupari muito temido e respeitado em qualquer empreitada, era impressionante. Musculoso, medindo mais de dois metros de altura, tendo a força de dezenas de homens combinados, marchava imponente à frente de seu exército, resoluto e determinado. A sua bandeira ia ao seu lado, levantada bem alta e orgulhosa.

E sobre eles seguia a poderosa rainha GarraDeLua com seu séquito, acompanhada de muitas coris-negras e coris-caririn.

Diante da visão do pequeno exército que partia para dar combate aos voadores os danatuás se encheram de poder, que expressaram com um poderoso grito de guerra.

O grande jurupari sorriu orgulhoso de sua empreitada.

Os thianahus, percebendo o desdobramento do que acontecia, reagiram com urros violentos e se esforçaram ainda mais em quebrar o cerco. A batalha tornou-se mais feroz, mais encarniçada, agora que os danatuás se encontravam diminuídos em quantidade. Mas nenhum lado prevalecia sobre o outro; os danatuás mantinham o violento cerco, e os thianahus insistiam em resistir bravamente.

Sobre uma elevação o conselho de guerra dos danatuás via o exército de Otempele distanciar-se quando se assustou com uma grande barreira escura que se levantava no horizonte, bem à frente de Otempele. A barreira escura avançava muito lentamente, como se uma grossa nuvem de tempestade estivesse vindo contra a cidade. E dessa nuvem puderam ouvir gritos ferozes abafados pela distância. Com preocupação viram que, ao dar com o exército de Otempele, ela passou a se revolver mais violentamente, subindo e descendo com violência, como se procurasse destruir a própria terra.

Quando a nuvem encontrou Otempele o chão inteiro pareceu tremer.

O exército de Otempele resistiu e conseguiu se defender do ataque desesperado, recuando muito lentamente. A nuvem raleava nos ataques que empreendia, tal como o exército no chão e no céu, que minguara um bom tanto.

A desesperada batalha ceifava muitas vidas dos dois lados.

Devagar e com sacrifício terrível o exército de Otempele ia recuando. Apesar de provocar enormes baixas nos inimigos todos sabiam, desde o início, que não tinha como prevalecer, o que tornava sua batalha ainda mais magnífica.

Quando os exércitos de Otempele e dos danatuás estavam mais próximos, uma grande quantidade de sombras e mantas do exército do litoral subiu como uma tira de fumaça tocada pelo vento. Bem alto a tira curvou sobre o próprio peso e caiu com força sobre os que atacavam o portal.

Combatendo o exército de Otempele permaneceram os maiores sombras e mantas, agora tendo Escuridão e Trevas dentre eles, que faziam de tudo para impedir que os exércitos se unissem. Esses voadores desceram mais, e tudo se embolou violentamente; sombras, mantas, condores, seres e homens, harpias e coris-caririns e coris-negras se amalgamaram numa nuvem de sombras e poeira.

O conselho olhava maravilhado a batalha de Otempele quando algo inesperado aconteceu. Urros e assovios terríveis passaram a ressoar nas fileiras dos voadores, que se compactaram ainda mais como uma barreira escura girando bem mais furiosamente, espremendo o pequeno exército de Otempele. Como se avisados de algo, os thianahus, acuados de encontro ao portal, tornaram-se ainda mais desesperados, obrigando os danatuás a defenderem sua posição como podiam. Como gotas de chuva na terra seca a vida ia tombando, esmigalhando-se de encontro ao chão duro e raivoso.

O cerco fora rompido.