Como pode algo tão pequeno encerrar tantos destinos? Quem encerrou no homem tal poder?
Uma longa e silenciosa parede de anjos perfilados frente à tempestade, com suas caudas flutuando preguiçosas no vento furioso ou com suas longas asas desfraldadas, estudava gravemente as linhas inimigas, buscando identificar cada um dos líderes de matilha, como chamam os comandantes inimigos.
Ematiel, o grande comandante, olhou para o lago e pensou sobre os homens e as pessoas, e se entristeceu por ambos. Abaixo deles a cidade, iluminada por inúmeros pontos de luz de archotes, parecia triste naqueles dias. O frio enregelante avançava, mas ninguém parecia se aperceber dele. Havia uma solidão, uma saudade naquele silêncio, percebeu, uma dor pequena e indefinível na tarde que morria.
Por um tempo ainda vasculhou as fileiras inimigas, procurando Trevas e Escuridão, mas não os viu.
Suspirou.
Sentia dor pela escolha das três mutas, agora aliadas declaradas dos demônios. Alegoria, Dosvivos e Danação deixavam tudo muito confuso, e perigoso. Então, agora era ainda mais urgente proteger as dez mutas restantes.
No perímetro da cidade via os magníficos nefelins éllicos com suas características orelhas pontudas e suas tatuagens discretas e cheias de poder; altos, esguios, orgulhosos, poderosos em suas armaduras angélicas, imóveis, aguardando em meio ao silêncio que parecia uma poeira extremamente densa no ar. Suas longas lanças à frente do corpo, as pontas vermelhas como sangue voltadas para o alto como os pelos eriçados de um porco espinho em fogo. E, em suas cinturas, suspirando por batalhas, as longas espadas, consideradas por muitos como mágicas, duras como diamantes, apesar de flexíveis como o ferro nas mãos de um forte guerreiro.
Mais à retaguarda os valorosos humanos, nefelins e entes, os belos olhos atentos e concentrados à frente, mostrando que nesta noite apenas desejavam ser,... gloriosos.
E atrás de toda essa muralha estava a cidade viva, receosa de seu futuro, os olhos e os corações das vidas aninhadas examinando com preocupação os exércitos, tentando compreender porque os outros queriam tanto destruí-las. Mas não havia medo. Havia aquele orgulho, aquela certeza de que estavam do lado certo, apesar de haver sempre a pergunta se poderia um ser vivo se empenhar com louca determinação numa batalha em que não acreditasse, porque é certo que ele, se obrigado, pode empenhar sua força, sua energia, mas não sua vontade, não sua alma.
Sorriu.
De olhar posto nas distantes montanhas se questionava o que seriam eles para os demônios, em como os demônios os definiriam.
Com a atenção vagando pelas fileiras dos demônios se lembrou de que eles surgiram para que houvesse equilíbrio, acalentados com o mesmo carinho com que eles mesmos o foram.
Uma dor suave apertou seu coração.
- Azaxel, não conseguiremos prevalecer aqui, não conseguiremos passar por essa noite. Temo por esse povo – falou abatido para o companheiro que flutuava ao seu lado.
Azaxel passou os olhos por todo o cenário do enfrentamento. Havia um peso sombrio no céu, que enchia a terra de sombras.
- Se tiver que ser assim, Ematiel, que seja – respondeu numa voz pausada e tranquila, feita de uma dor resolvida. – Sacrifícios são necessários para que o plano se desenvolva.
Ematiel observou o amigo por um curto tempo, e sorriu por fim. Suspirou fundo, se enchendo de energia, espantando o desanimo que o ameaçava.
- Claro que sim, claro que sim – a voz estava pensativa, distante. – Já temos permissão?
- Já! Já temos a permissão dos nativos para toda a terra baixa.
- Então os demônios vão ficar bloqueados aqui em cima – cismou Ematiel, o alívio claro em sua voz. – Que bom!
- Sim, eles não vão conseguir entrar por lá, a não ser à custa de muita energia e, mesmo assim, somente uns poucos deles – confirmou Azaxel, a voz tranquila e impessoal.
Ematiel parou seus pensamentos e ficou observando as fileiras inimigas. Havia uma energia nova ali, encorpando-se, afiando-se, preparando-se. O ar parecia estar ficando cada vez mais eletrizado. Percebeu que seu amigo ao lado sentia a elevação da energia.
- As coisas estão para acontecer. Dê ordens para que os portadores levem para longe as nove rainhas – mandou, a voz firme e tranquila de quem começa a mover as peças num tabuleiro.
- Acha aconselhável manter Canhestra aqui em cima, ao alcance dos demônios? – perguntou, a preocupação indisfarçada na voz.
Ematiel ficou pensativo, a garra tocando com carinho a muta escondida em suas dobras.
- Será que me viciei tanto a ela? – Cismou. - Não há risco. Sinto sua fidelidade à luz – declarou.
Azaxel o observou preocupado. A capacidade de Canhestra de manipular a mente era extremamente preocupante, e temia por seu comandante. Mas, a escolha era dele, e tinha que aceitar isso.
- Tudo bem, sendo essa a sua escolha – desabafou, tirando os olhos do amigo.
- E fale para Natael bloquear e ocultar os outros portais. Mesmo que não os tenhamos colocado em operação eles se tornarão muito perigosos se caírem sob vontades erradas.
- Já pensou se não seria bom destruí-los?
- Confesso que sim - confidenciou. - Mas, Azaxel, quem sabe do futuro? É sempre aconselhável deixar aberta uma válvula, uma alternativa. Bloquear ou inutilizar os portais terá o mesmo efeito, porque eles serão inúteis para os demônios num caso ou noutro. Porém, se nós somente os bloquearmos e ocultarmos, deixamos ao futuro uma oportunidade aberta para que eles possam nos servir em outros propósitos ou ocasiões.
Azaxel ficou pensativo por um momento. Então abanou ligeiramente a cabeça em concordância. Nunca era mal deixar uma alternativa, ainda mais numa guerra que tinha todos os ingredientes para durar por longo tempo. Ematiel estava certo, viu.
- Sim - falou despachando um emissário após transmitir rapidamente as ordens. Então, junto com Ematiel, ficou em silêncio por algum tempo, observando a cidade abaixo.
> Será terrível deixá-la para eles - falou por fim.
Ematiel fechou os olhos com pesar. Então os abriu, colocando-os fixamente sobre as fileiras inimigas, onde a energia continuava a subir perigosamente, arrumadas no céu e no chão.
- Está enganado, meu amigo. A cidade somos nós, não as pedras. As pedras não constroem; é a vida a grande construtora das coisas mais maravilhosas e,... mais terríveis – suspirou.
Sem mais qualquer palavra ficaram flutuando à frente da muralha de seres, entre os da terra e os que guardavam os céus. O vento zunia agradavelmente nos ouvidos como um embalo, uma promessa de quietude e proteção, uma promessa de paz, que Ematiel sabia ser apenas uma ilusão.
Então a energia deu um salto violento. No segundo seguinte gritos de ódio explodiram das fileiras inimigas.
Tudo estava para acontecer.
Com os olhos sérios e determinados Ematiel virou-se para os seus, a aura poderosa, toda a tristeza esquecida, a longa cauda batendo-se no ar.
Respirou fundo, a garra seguindo com carinho as linhas da face da muta.
> Orgulhoso – falou apontando para si mesmo com suas longas garras de marfim, que brilharam vermelhas no céu que morria. – Mas não o orgulho que leva à destruição, mas sim o orgulho que toca a alma, por ter partilhado tudo isto com vocês e por ter a oportunidade de lutar ao lado de cada um de vocês. Sintam meu ser, o orgulho imenso que tenho de vocês e o carinho especial por cada um, por cada um de vocês. Quero lhes agradecer por essa oportunidade. E, se morrermos num dia como este, defendendo o que estamos defendendo, lutando ao lado de quem lutamos, tenho certeza de que não haverá morte, mas apenas uma passagem para um lugar belo e nobre.
Ematiel sentiu os inimigos se deslocando, avançando para cima de suas fileiras. Olhou para cada um dos companheiros e reconheceu com satisfação a calma inflexível que, sabia, devia estar causando terror em cada um dos demônios que vinham em carga.
> É nosso dever e nosso direito deixar orgulhosos de nós os que vierem após. Que o medo corroa os corações dos demônios, que o pânico se instale em seus corações sem luz porque, apesar de estarem em legiões incontáveis, sabem que irão perecer sob nossa vontade.
> Fomos criados por um mesmo deus – falou com a voz cheia de poder, o eco batendo de encontro aos flancos das montanhas, - mas eles não o servem. Que sintam nossa ira – gritou na voz que explodiu pelo topo das montanhas. - Pelo deus Trovão e pelas criaturas que ama – gritou mais uma vez, dando mais poder à garra sanguínea como uma longa espada, apontando-a para o céu, vermelha como fogo.
- Pelo deus Trovão – gritaram os anjos em poderoso coro, as armas e garras vermelhas apontadas para o alto.
- Pelo deus Trovão – gritaram os seres na terra, em meio aos milhares de pios das aves no céu.
- Pelo deus Trovão - gritou Ematiel novamente, seu corpo se iluminando de energia, a voz tomada de poder, a garra em riste, furiosa com os ímpios.
Com uma explosão seca as caudas sumiram, as asas se ergueram e os anjos se inflamaram, queimando o ar acima da cidade, enquanto os seres da terra apontavam suas armas para a muralha que avançava.
- Pelo Trovão – explodiu o coro dos anjos e vivos em uníssono, num urro violento que ecoou das fileiras do céu e da terra, as armas brilhando perigosas na luz que se ia.
Ematiel, os olhos em fogo, se virou para enfrentar a colossal onda que avançava sobre a cidade, satisfeito ao localizar Trevas e Escuridão à frente de suas hostes. O anjo se deslocou para uma posição que o levaria diretamente para os dois demônios, mas viu que havia uma muralha protegendo os dois, que girava e os tirava das vistas. Eles brincavam, sabia, escarnecendo de suas intenções, das intenções dos anjos, porque sabiam que buscavam retomar as caveiras enganadas, roubadas e corrompidas, e novamente dominar o portal.
- Que desapareçam os inimigos do Trovão – gritou numa voz tão poderosa que aumentou a energia de cada ser vivente, elevando levemente seus brilhos e suas vontades. – Agora!!! – comandou, avançando com determinação para a barreira movediça e escura, levando consigo todo o imenso e poderoso paredão de seres.
Os demônios avançavam, seus comandantes expostos à frente dos batalhões, enquanto de suas fileiras via caçadores, no céu e na terra, convergindo para eles, discretos e letais. Aumentou a velocidade, diminuindo a distância rapidamente; as duas colossais paredes de armas e vivos avançando raivosamente.
Então não havia mais distância. Um barulho ensurdecedor de armas e corpos atingiu o ar e o encheu violentamente.
As garras de um condor e de um manta avançavam contra si. Ele simplesmente se esquivou dos dois e atingiu um dos comandantes que vinham ao lado, rasgando-o de fora a fora.
Pelo canto dos olhos viu que, como riscos, vários anjos e nefelins atingiam também seus alvos.
Raios de luzes de variadas cores e jatos de energia explodiam pelos lados, e muitos pereciam.
Hordas de demônios, enlouquecidas e errantes por falta de seus comandantes mortos em batalha, se voltaram para dentro das fileiras dos demônios, causando tumulto e grandes confusões, do que se aproveitaram os homens e os nefelins, e os anjos e seus condores.
Ematiel se preparava para investir contra um grupo de demônios quando o viu.
Escuridão estava parado logo à frente, encarando-o com seus olhos terríveis. Ematiel se esquivou de dois ataques e atingiu mortalmente um manta e um sombra que vinham contra ele. Preparava-se para avançar contra Escuridão quando três mantas se lançaram ao ataque. Ematiel se esquivou e os capturou numa bolha de energia, que fechou com violência e os esmagou. Então, determinado, avançou contra Escuridão, sua luz tornando-o muito maior e mais perigoso. Apesar de ser grande para um anjo, perto de Escuridão era bem pequeno, motivo da risada terrível de Escuridão que retumbou no ar.
Ematiel avançou como um raio, cultivando a esperança de que, se desse cabo de Escuridão, o baque seria tão violento sobre os inimigos que tinha certeza de poder alimentar outros dias. Quando estava bem próximo Escuridão se mexeu extremamente rápido, e Ematiel passou ao lado. Sem perda de tempo Ematiel girou em uma curva estreita e estendeu os longos dedos em riste, que passou a centímetros do grande demônio.
Escuridão urrou de raiva por quase ter sido apanhado.
O demônio, após contrair todo o corpo, girou e partiu atrás de Ematiel. Esquivando e contornando cada vez mais rápido, Ematiel conseguia manter Escuridão à distância. Então o anjo simplesmente parou e flutuou alguns poucos centímetros para a esquerda, a garra esticada para o lado, enquanto a garra mais longa buscava o inimigo. A garra atingiu Escuridão, logo seguida pela garra mais longa, que atingiu a mesma ferida, aumentando enormemente o dano e a dor.
Escuridão gritou de dor ao sentir os cortes fundos afligindo todo seu lado direito.
O demônio, enlouquecido de ódio e dor, estacou em frente ao anjo, os olhos vermelhos parecendo brasas vivas. Tamanha era a raiva que sentia que em seu corpo começaram a surgir veios vermelhos, como linhas de rachaduras.
Abrindo todo seu ser Escuridão lançou uma onda de energia tão poderosa que varreu tudo o que havia num amplo círculo, dentro do qual só permaneceram Escuridão e Ematiel, que havia previsto o ataque e se protegido.
Ematiel girou rápido e lançou sua energia, como faróis brancos na neblina.
Escuridão acusou o golpe.
O anjo parou à prudente distância do demônio, avaliando, procurando uma brecha para destruí-lo de vez.
Subitamente pressentiu um rápido movimento na sua direita.
Ematiel viu Azaxel partindo apressado, mais precisamente para suas costas. Sentiu um frio percorrer sua espinha, desconfiando de que algum demônio poderia ter se aproximado sem que se desse conta.
Mas não houve tempo.
Uma dor imensa e terrível cresceu e se espalhou por todo seu ser.
- E lá se foi um anjinho – ouviu a voz gutural de Escuridão enquanto sentia uma espada se revirando pelas suas costas dentro de seu corpo. – Tadinho,... Dor, dor e dor... O que dói mais, anjinho? Traição dói? – falou Escuridão tomado de prazer imóvel à uma pequena distância à sua frente, pondo à vista do anjo a muta Canhestra, que brilhava em cinza pálido.
Ematiel tateou em suas dobras, e viu que ela realmente não estava mais ali, e foi o momento em que sentiu toda a extensão de sua derrota. Canhestra o usara para assumir sua escolha.
O anjo tirou os olhos de Escuridão, que sorria tranquilo ignorando o corte em seu flanco enquanto ocultava a muta em suas dobras negras.
Lamentou ter se distraído, dando chance para o ataque de Trevas, pois que o poder escuro que sentia só podia ser dele. A dor e os sons pareciam que iam se almofadando lentamente, quando sentiu um grande impacto, um empurrão que afundava ainda mais a espada em seu corpo, o que o despertou. Olhando para a direita viu que Trevas também segurava Azaxel.
O prazer que dominava o monstro era imenso.
Sua dor explodiu assim que Trevas começou a retirar a espada de suas entranhas. Ematiel olhou para o amigo, que não conseguia se desvencilhar do demônio.
A dor atingiu seu coração.
Usando suas últimas forças girou com grande violência, conseguindo surpreender Trevas. Quando suas garras o atingiram perto dos olhos viu com satisfação que Azaxel ficara livre.
Preparava-se para receber o golpe final dos demônios quando foi amparado por vários anjos, que tinham acorrido em auxílio dos dois.
Pela neblina que avançava em seus olhos conseguiu ver Escuridão e Trevas, imensos, se perdendo no meio da batalha.