O trabalho de Vicente muitas vezes exigia ilustrações. Ele praticamente tinha um contrato indireto com o chargista, onde suas ideias descartadas na redação eram adaptadas para uma Charge.
Ser chamado para aquela sala logo após ver seu colega ser demitido, o fez soar frio.
Vicente se levantou com dificuldade e engoliu seco. O que ele tinha feito de errado?
O objetivo era humilhar a oposição e trazer eleitores para a República. Vargas deveria ficar por mais alguns anos.
Foi feita uma previsão, que, com o avanço tecnológico e social, o Cruzeiro poderia se tornar uma grande moeda mundial, e que as vendas com o agro negócio aumentariam em níveis alarmantes.
A Burguesia estava amando essa ideia… A burguesia otimista.
Apostar numa melhora do país enquanto as Coreias guerreavam, e vivendo no mesmo continente que os poderosos e perigosos EUA, não parecia acarretar em algo bom.
Se o povo está feliz com o representante, certamente esse país é Comunista.
Foi mandado Vicente fazer os textos bem humorados, e ele o fez para ganhar seu dinheiro do final do mês.
Certamente a proposta populista de Getúlio Vargas poderia atrapalhar a vida de Vicente, mas ele era da Classe Média Alta, tinha uma vida estável.
O problema estava em perder esse emprego, e assim sua vida confortável. Ele já não tinha o brilho nos olhos de quando começou a trabalha com jornalismo, mas perder seu emprego não tinha nada haver com sua animação e felicidade.
Ele entrou na sala do patrão e fechou a porta de vidro. Sentiu toda sua carreira passar pelos seus olhos. O que ele fez de errado?
Ele fazia inúmeras versões do mesmo texto, para seguir a norma; diferente do Chargista, não apostava na radicalidade; em quase 20 anos de carreira, seu maior erro foi derrubar uma xícara de café quando era um novato.
Vicente esperou seu patrão o deixar sentar na cadeira. Ele fez, tentando manter uma pose profissional.
Vicente olhava para a mesa de seu patrão e viu uma pilha de documentos viradas de cabeça para baixo.
A mesa do patrão era bem maior que a de qualquer outro funcionário, e muito mais bonita aos olhos.
De qualquer forma, ele precisava acabar logo com isso.
Poderia ser muito bem uma coisa boba, como um trabalho qualquer… Mas isso não é falado cara a cara com o patrão.
Normalmente ele fala para todos na agência ou escolhe algum veterano para dividir as equipes.
É muito estranho ele ser chamado.
Vicente poderia muito bem ser demitido agora.
— Não estamos numa situação muito interessante. — disse o Patrão com sua voz gorda. Terminando de falar, ele se levantou.
"Eu vou ser demitido". Pensou Vicente ao ouvir a primeira frase.
Os olhos de Vicente começaram a seguir o patrão.
O homem gordo transbordava riqueza, seu terno apertado parecia acentuar isso. Não só sua aparência, mas o lugar onde trabalhava, o cubículo, parecia pertencer a outro mundo.
Era limpo, grandioso, era o lugar onde alguns troféus da agência eram guardados e deixados para exposição.
O patrão estava logo atrás de um, o que Vicente tinha ganhado por ter feito um documentário em seus anos mais novos.
— Nosso presidente tenta manter-se forte, mas rumores de corrupção e comunismo estão dificultando nossa vida.
Ele olhou para o prêmio de Vicente.
— Eu consigo sentir os Americanos mandando suas bombas a qualquer momento.
…
— Vicente, eu e você sabemos que a ideia de Vargas é ridícula. Esse país não está em um bom momento para uma evolução dessas. O que tem a dizer sobre isso?
Que situação estranha.
— Se… Se Vargas permanecer na presidência, os EUA com certeza irão agir… Com muito mais frequência. — Disse Vicente, tímido.
O patrão concordou e respondeu.
— Eu tenho algumas previsões. O Brasil se torna uma super potência, os EUA nos percebe e declara guerra, nos chamando de Comunistas. A outra envolve a invasão Americana no Brasil. Isso já aconteceu durante a Grande Guerra e muito de seus costumes nós imitamos. Porém eu vejo sendo algo bem mais radical. Nós iriamos estar a mercê dos EUA e faríamos tudo que eles quisessem, porque eles nos dariam tecnologia necessária para fazer o país prosperar, com a promessa de que seríamos fiéis a eles, em qualquer sentido… Caso recusamos, mais uma vez, ameaça comunista.
O patrão pausou para recuperar o ar.
— De qualquer forma não vejo que a pessoa que estaria a mercê dos Americanos seria Vargas. Acho difícil ele continuar como presidente.
Isso é verdade. Os poderosos não gostam de Vargas. Mais do que isso, os militares não gostam de Vargas.
— Tudo está desmoronando para ele. Lacerda fez um bom trabalho levando um tiro no pé e os militares esperam que com a renúncia de Vargas, o povo caia de joelhos pedindo por eles… O novo presidente com certeza vai sofrer ou se entregar aos EUA.
Vicente ajeitou seus óculos.
— Precisamos que os ideais de Vargas continuem no Brasil. Os jornais da oposição não chegam nem perto das nossas vendas. Dar ao povo o que eles querem ouvir resultou em algo maravilhoso para nós.
Vicente entendeu, não tinha certeza, mas entendeu tudo.
— Não é mais uma questão de simplesmente mudar de lado. Se o Nacionalismo enfraquecer, podemos aos poucos ficar do lado da oposição… Isso é o que normalmente aconteceria. Mas agora…
— Estamos em guerra. Se a oposição vencer, os militares voltam ao poder e… Eles não são tão expertos para nos aceitarem… — Disse Vicente.
— Não só isso… Não é por eles estarem no governo que o povo vai aceitar nisso. O povo ama Vargas, ele é o presidente que se importa com a causa dos trabalhadores. Ele é o Velhinho do Brasil. Dificilmente os militares vão ter poder após Vargas sair… Vargas pode se candidatar depois de 4 anos…
Ele continuou.
— Eu prevejo que na próxima eleição, termine como um militar contra alguém com ideias parecidas com Vargas. Isso é quase uma certeza. Não sabemos como vai ser a renúncia de Vargas, mas acredito que o povo ainda vai amá-lo.
— Então… Qual o nosso objetivo? — Perguntou Vicente.
— Vamos continuar apoiando Vargas, e mais do que nunca, vamos chamar a atenção dos Estados Unidos.
O que?
— Isso está circulando em alguns jornais que apoiam a República. Todos sabem o perigo dos EUA para com nosso país, então acharam uma boa ideia vender a mensagem de que não somos comunistas. Não tem como fugirmos deles em nenhuma circunstância, então seria bom transforma-los em nossos aliados.
— Isso vai contra os ideais do presidente, mas é justificável. Foi ele que veio com essa ideia?
— Oficialmente sim, mas só entre os jornalistas que apoiam seu governo. Não é de se estranhar que em poucas semanas algum espião vai vazar tudo.
Vicente engoliu seco.
— É aí que você entra. — Ele apontou para o troféu. — Antes de ser redator, você trabalhava com gravação e esse prêmio já indica o porquê eu ter lhe escolhido.
Vicente fez um sim com a cabeça.
— Eu preciso que você faça um documentário sobre o Brasil, qualquer parte dele. A equipe não pode ser muito grande, para evitar os espiões, mas você tem até o final do Governo de Vargas para finalizá-lo.
Vicente pôde sentir o brilho em seus olhos renascer. Era um brilho fraco, desconfiado, mas o sulficente para fazer seu corpo tremer de animação. Não podia evitar arrumar seus óculos.
— Vamos para as regras.
Ah.
— Queremos que os EUA não se preocupe conosco, então devemos apresentar para eles o Brasil e suas similaridades… É importante não mostrar tudo, já que eles podem muito bem tomar as informações e nos atacar. Vicente, as regras são…
Basicamente, são três regras simples.
\[1° - Apresentação Turística, deixar claro o capitalismo no Brasil\]
\[2° - Deve ser feito em inglês, sem legendas. O sotaque deve ser familiar aos americanos\]
\[3° - Mostrar similaridades com os Americanos\]
Vicente ouviu as regras e até recebeu um papel com elas escritas.
Ele se despediu do patrão e voltou a trabalhar até a hora de ir embora.
Enquanto arrumava suas coisas, algumas pessoas comentavam que os olhos de Vicente tinha um brilho fraco, mas que estava lá.