- Não, não. Eu coloquei a toalha aqui encima. Disse Dante à sua mãe.
-Ninguém entrou no seu quarto, seu irmão está com a porta trancada, eu e seu pai estávamos dormindo. Deveria prestar mais atenção onde bota as coisas, Dante Monteiro. Argumenta decisivamente Roberta, sua mãe.
-Tá, tá! Pode me dar uma outra toalha? Quero banhar Anjo.
-Certo, certo. Ela entrega uma toalha azul pastel ao filho e dá uma última olhada na cama, saindo do quarto logo em seguida. Dante, em um momento de alívio, tira o espelho de baixo da cama e novamente o coloca encima do colchão. "Ainda bem que ela não olhou na parte inferior", pensou.
Por mais que ele tenha conseguido uma toalha nova, onde diabos estava a antiga? Ele não tinha dúvidas, havia deixado por cima do espelho, fica pensativo por longos 30 segundos, e põe mentalmente a culpa na sua mãe, outra vez. Antes de sair do quarto, coloca o espelho novamente embaixo da cama, Dante pensa que deveria ter feito isso desde o começo, afinal, ele não tinha garantia nenhuma de que alguém não iria entrar no seu quarto. Ele sai do quarto e vai em direção ao quintal, dar o merecido banho do seu amigo peludo. Não foi difícil, apenas cansativo, seu cão era peludo e secava lentamente o que acaba por render várias horas. Terminado o glorioso banho, Anjo acompanha seu dono até o quarto, onde iriam finalmente descansar. Sua mãe levanta enérgica e aparece na cozinha, antes que Dante e seu cachorro entrem em casa, cortando qualquer possibilidade do garoto de deitar na cama úmido e sujo de pelos, Dante diz que vai tomar banho, de forma quase imperceptível, mas diz. Sua mãe comenta brevemente sobre ir fazer um chá, liga a chaleira no fogão e reforça a ideia do banho.
-Vou apenas colocar Anjo no meu quarto. disse Dante.
Sua mãe não comenta nada, apenas retorna a olhar para a chaleira, satisfeita. O garoto chama atenção do seu cachorro (que estava puxando o tapete da sala) e o coloca dentro do quarto, pega uma toalha nova para banho e faz carinho no seu cão até que ele durma, subitamente.
-Até que a morte nos separe, garotão. Dante sussurra ao seu melhor amigo, colocando o brinquedo de quando era filhote, ao lado do seu cachorro, vira-se a saída e sai pela porta.
Ao chegar no banheiro, Dante liga a luz, pois nota que já começara a escurecer, tira as roupas e joga preguiçosamente no chão. O garoto entra na banheira e lá suspira, esvaindo o cansaço acumulado em seu corpo. Ouve sons agudos (como quando se arrasta um garfo em um prato de vidro), assusta-se levemente, "enfim a chaleira avisou que o chá está pronto", pensou, acaba por cochilar no banho, relaxando o corpo na banheira. Dante acorda de súbito, ouve as batidas na porta do banheiro, era sua mãe:
-Dante! Dormiu no banheiro outra vez? O chá acabou de ficar pronto, ela diz.
-Por quanto tempo fiquei aqui? Ele pergunta do outro lado.
-1 hora! Ela emana bravamente.
O garoto se cobre com a toalha, calça seus chinelos e parte para o quarto, ainda úmido. No meio do caminho se lembra de Anjo, vai à dispensa e coloca ração em uma vasilha em formato de coleira e leva ao quarto. Abrindo a porta, ele diz em voz alta:
-Aqui, filho, deve estar morrendo de fome. Dante direciona as palavras ao cachorro, seu filho, o seu melhor amigo, enquanto liga a luz.
Ele liga.
Dante passa a mão desocupada nos olhos.
O sorriso no rosto, transforma-se em olhos arregalados.
Ele pisca descontroladamente.
Sua mão mão fraqueja, a o pote de ração cai de suas mãos, espalhando todo seu conteúdo pelo quarto.
-Anjo?
O quarto está completamente bagunçado, as malas rasgadas, as cortinas ainda balançando em movimento pendular, o chão está marcado do que pareciam ser arranhões, somados à pelos espalhados por todo o lugar. Dante vê os grãos de ração serem sugados em direção ao espelho, ainda em choque, que parecia igualmente sugar toda a luz da lua e magicamente engole a comida do seu melhor amigo.
-Mas que mer-. Antes que possa gritar e com lágrimas escorrendo no rosto, ele é puxado violentamente em direção ao espelho. Dante sente suas pernas baterem com força no chão arranhado, dá um grito abafado, vê a porta do seu quarto fechando e ouve a sua própria voz dizendo "mãe, não vou jantar hoje, estou cansado, vou dormir". Era indiscutivelmente sua voz, mas não vinha dele, mal conseguia chamar por ajuda.
-Como quiser, querido, disse sua mãe em voz alta.
Ele sabia que o espelho emitiu sua voz e de alguma forma havia matado Anjo. Antes de ser completamente jantado pelo objeto, falou baixo, fraquejando: "filho da puta", chocando-se contra o vidro do espelho. Tudo fica escuro. Ele se vê caindo em uma escuridão que não parecia ter fim, olha para cima, seu lugar, de onde veio, e vê a parte de cima da cama, refletida pelo mundo onde nasceu, o único que conhecia, ele fecha os olhos. Sua a velocidade de queda vai diminuindo, lentamente, como se fosse pequeno outra vez, no colo de sua mãe, ele vai sendo colocado na vertical, pairando em pé. Enfim seus pés tocam uma superfície rígida, ele olha para cima desesperado, o espelho para, sob seus olhos, de refletir a parte de cima da cama, e tudo fica escuro. Ele olha para os lados, desesperado, sem entender nada. Como uma mudança para uma casa nova resultaria na perda do seu melhor amigo e consequentemente uma viagem para uma realidade desconhecida?
Dante direciona suas mãos próximas ao braço para se beliscar, aquilo só poderia ser um pesadelo, ele iria acordar do banho, tudo ficaria bem, ele, Anjo, os dois iriam brincar e passear pelo complexo enorme de casas. Mas não, era real, ele se belisca, era completamente real, estava acontecendo de verdade.
Antes que pudesse entrar em desespero, mais uma vez, o lugar até então escuro, começa a brilhar, especificamente enormes flores ao seu redor. Flores do tamanho de árvores brilhavam em azul. Ele olha em direção a uma delas e vê, pendurado, o que parecia ser uma toalha branca com filhotes de cachorro bordados.
Ele reconhecia aquela toalha, era inconfundível, a toalha de Anjo, que ele havia deixado encima do espelho. Ele sabia que havia deixado lá. Dante percebe que parte das suas forças estão recuperadas, o garoto começa a gritar pelo seu cachorro, ainda com suas pernas doendo, ele grita por Anjo, Dante grita o suficiente para ser ouvido pelo céu e inferno, mas nada, nada do seu melhor amigo.
Com a voz rouca, ele olha para baixo, precisava sentar, as pernas doíam e tremiam, sentia-se cansado, o ar, lá embaixo, era rarefeito, estava calor. A luz azul vinda de flores também azuis, iluminam com mais intensidade, o lugar. Suas pétalas eram majestosas, a flor lembrava uma gérbera, tinha vigas em espiral saindo de seu interior, folhas onduladas, era imponente ao extremo, o tipo de coisa que só se via em filmes fantásticos. Emitia um brilho pulsante, constantemente desvanecia e retornava. De alguma forma, o brilho dessas flores colossais, deixava o interior daquele lugar (que diga-se de passagem, era muito quente), com uma ambientação fria. Olhando para baixo, era possível ver uma espécie de gramado, comum, igual ao que ele já conhecia. Ele senta, mesmo sem saber se pode ou não sentar, se é, ou não, confiável, ele precisava sentar. Bastou que encostasse as pernas no chão para desabar, aquilo tinha sido muito para processar, muita coisa aconteceu, nem parecia real. Dante chorava como quando passava noites em claro na mais profunda depressão, mas agora ele não tinha quem o consolasse, o seu ombro amigo, "Anjo se foi", pensou, ainda chorando, seu choro nunca perdera a constância.
Na sua cabeça, passavam-se todos os momentos bons e ruins que esteve com seu cão, como quando seu irmão o pintou todo com o batom da mãe. Lembrou quando Anjo destruiu a roupa recém-comparada do pai. Independentemente da situação, ninguém conseguia ficar bravo com Anjo.
Dante se vê sem saída, ele estava sozinho, sem ninguém. O interior daquele lugar lembrava uma caverna, rachaduras e estruturas enormes de pedra, grosseiramente colocadas, contrastavam com a beleza delicada e singular das flores. Ele olha ao seu redor, levanta e ainda em desespero tenta apalpar as paredes daquele lugar, procurar uma brecha mas falha desastrosamente, "não há saída", conclui. No ápice da dor, Dante pensa em tirar sua vida. Enfim grita, em direção ao que antes seria o teto daquele lugar: "Seja lá o que for, me mate! Me mate... Me mate...", ele torna a chorar.
Novamente, a toalha de banho do seu não presente amigo, chama a sua atenção, ele se aproxima, estava a seu alcance, presa em uma das vinhas da flor azul, Dante percebeu o quanto aquelas flores eram ameaçadoras conforme se aproximava, o quanto sua estrutura era grossa, suas folhas pontiagudas ao longo do tronco lembravam serras, a flor quase parecia respirar, pulsava sua luz fria em tempo constante e lento. Era possível ver um líquido viscoso caminhar por uma espécie de "veia" que acompanhava todo o comprimento da flor, Dante nota que há uma película transparente que separa a flor do seu interior, permitindo observar a circulação de alguma seiva. Ele levanta uma de suas mãos e se coloca na ponta dos pés, elevando seu corpo em alguns centímetros, ele estica ao máximo sua mão, aponta seus dedos em direção à toalha, mas antes, segundos antes de encostar sua mão no tecido, Dante sente sua pele rasgar, o que o faz recuar rapidamente ao chão.
Ele havia encostado sua mão na estrutura grosseira da flor, algo lá havia lhe machucado.
Sentindo sua mão latejar de dor, ele olha em direção ao local, nas costas da mão, um pouco abaixo do polegar. Não era uma ferida grande, mas o suficiente para gerar certo desconforto junto com o sangue escorrendo pelo canto da mão, trilhando um caminho quase linear até seu pulso. Ele olha para o novo machucado, com certeza deixaria uma cicatriz, em ocasiões normais, mas o garoto não imaginava que haveria chance de sobreviver, era questão de tempo até que ele desse as costas para a vida. Como última vontade, Dante fica novamente na ponta dos pés e se direciona a pegar a toalha, ele nota que a flor tinha pequenos espinhos que estavam presentes em todo o seu corpo, ele agora compreende a natureza do seu machucado. O garoto consegue finalmente pegar a toalha do seu melhor amigo, ao menos aquilo tinha sobrado, o último suspiro de uma fogueira no inverno árduo.
Ele abraça a toalha e torna a chorar. "Anjo...", fala dolorosamente, gaguejando, "Não dá mais, dói, eu queria ter te visto uma última vez, se eu não tivesse dormido, é minha culpa...", diz o garoto atordoado, cerrando os dentes, sentindo a dor que nunca sentira, as lágrimas se misturam ao seu sangue, Dante segura com força a toalha de Anjo e sente seu machucado ainda úmido, adormecer, sente aquilo, seja lá o que fosse, estender-se por todo seu braço, tronco, pernas.
O garoto sentia apenas um formigamento, logo cedeu sua mão e foi soltando a toalha, começara a sentir-se zonzo, fraco, analisando a situação, era muito provável que uma flor tão chamativa tivesse veneno, ele não conhecia as regras daquele lugar.
Sua visão estava escurecendo, a cabeça abaixava e ele a levantava com a força que podia, mas voltava a fraquejar. Dante, já caído no chão, olha para o lado esquerdo, quase fechando os olhos, com as mãos largadas pelo chão do lugar, sente um tremor na terra, uma inquietação, antes de fechar seus olhos abruptamente, ele nota uma silhueta se aproximando.
Dante fecha os olhos e suspira levemente como se fosse a última vez... Na sua consciência, na camada mais profunda dos seus pensamentos, ele escuta um latido assustado, acompanhado de uma fala desapontada: "Até que a morte nos separe, você disse, eu ainda estou aqui", disse a voz autora do latido, "Não me mate tão fácil, eu ainda não estou pronto para ser apenas um 'anjo da guarda".
Dante torna a sentir seu corpo, lentamente gesticula com a ponta dos dedos, o peito não parece pesar, seus olhos começam a ficar inquietos, o garoto passa a escutar a própria respiração e sente a pele umedecer, como se estivessem passando um pano molhado em seu rosto.
Gradativamente, Dante vai recuperando seus sentidos e ao abrir os olhos, consegue ver perfeitamente uma língua a passar compulsivamente pelo seu rosto, sente pelos encostando em seu corpo e com toda expectativa do mundo, ele recupera completamente sua visão.
E finalmente, vê a figura mais hedionda, repugnante, infernal, o ser mais horrendo que seus olhos já presenciaram, nem o pior filme de terror conseguiria se aproximar do aspecto medonho que aquilo conseguia ter. Parecia uma mulher, se descartássemos a abertura anormal da mandíbula, com provavelmente uns 50 cm de ponta a ponta, somados à um interior que não parecia ter fim, com fileiras e fileiras circulares de dentes afiados como navalhas, suas três línguas asquerosas que lembravam tentáculos podres, seus olhos negros e sem expressão, apenas pequenos buracos escuros e profundos na sua face pálida, esquelética, descamando como se trocasse de pele, e um cabelo longo que pairava pelo ar como cobras capazes de dar um rápido bote.
Seria uma mulher, se descartássemos as extremidades do corpo tão finas quanto uma caneta e ao mesmo tempo soavam maleáveis e cortantes, suas enormes mãos segurando o chão com uma força inexplicável, seus ossos quase visíveis, se não fosse a fina camada de pele que os cobria, sua segunda boca na região da barriga, igual a primeira, mas maior e com odor podre, com pernas que certamente estavam atrofiadas e não funcionais, forçando aquela coisa a rastejar, amaldiçoando os olhos de quem, nem que por um milésimo de segundos a olhasse e visse seu pescoço que parecia ter quase 1 metro.
Se tudo isso não estivesse em jogo, seria a silhueta de uma mulher. Seja lá o que fosse, estava ali, diante dos seus olhos, era quase possível sentir o instinto assassino daquela coisa, tinha uma aura diabólica, era um predador e Dante a mais frágil das presas. O garoto tenta, por fim, empurrar a criatura com os pés, para adiar, nem que minimamente, sua morte.