Passava da meia noite e Beatriz não conseguia dormir. Milhões de pensamentos povoavam sua cabeça. Não poderia estar acontecendo novamente com ela... Afinal, fugira desse sentimento durante sua vida inteira.
Ela não poderia estar apaixonada por sua colega de trabalho, sua melhor amiga. Na realidade, quase a única amiga.
Sua vida estava definida, estava casada, tinha três filhas, um bom marido, coisa rara de ser encontrado na atualidade. E trinta e seis anos.
Levantou-se e foi ao banheiro. O espelho não mentiu. Era uma bela mulher. Alta e loura, com um belo corpo realçado por curvas acentuadas. Talvez ela não tivesse um corpo de modelo fotográfico, mas estava muito satisfeita com ele.
No entanto, o corretivo facial não estava mais conseguindo disfarçar as olheiras das noites mal dormidas.
Pensava em Dominike. Nika, como os amigos costumavam chamar. Mas não podia fazer isso.
Nika tinha a idade de sua filha mais velha. E no passado, ela prometera a si mesma que não voltaria a acontecer. Jamais voltaria a desejar uma mulher.
Beatriz era secretária executiva de uma clínica particular no centro de São Paulo e todos os dias tinha que se encontrar com Nika nos corredores da clínica. Naquele dia, tinha sido no banheiro.
Ao entrar no banheiro feminino, ela se surpreendeu com sua colega de trabalho com os seios à mostra.
O fecho do sutiã havia quebrado e Nika estava aflita. Com dezenove anos, ela parecia ainda estar em pleno desenvolvimento corporal. E os seios eram muito fartos.
Então, era essencial que aquele sutiã fosse consertado.
Sendo uma mulher prevenida, em sua bolsa Bia carregava um pouco de tudo, inclusive uma agulha.
Então, a maneira que encontrou para ajudar foi costurar o sutiã às costas de Nika, pois o fecho havia se rasgado.
E quando Nika virou-se de costas para que isso pudesse ser feito, Bia, ao se aproximar sentiu o doce perfume dos cabelos de Nika... Pôde ver sua nuca branca, que agora aparecia, pois ela havia prendido os cabelos longos e negros para facilitar o serviço.
Estavam tão próximas, que Bia percebeu que a pele de Nika se eriçava ao seu contato. E sentiu vontade de se aproximar mais e mais. Sentiu-se tonta, fechou os olhos, balançou a cabeça e voltou à realidade.
Saiu do banheiro às pressas. O rosto ardia, o corpo sentia arrepios, mas não podia demostrar isso.
Deitada em seu quarto, com seu marido ao lado, dormindo há horas, ela se lembrava de seu passado. Em sua cabeça, ele voltou com força.
Outubro de 1987 e Bia, com seis anos e morando no interior da Bahia, brincava com Maressa, sua amiguinha da mesma idade que ela.
Maressa era a única criança com quem ela gostava de brincar. Não se via enfeitando bonecas, ou querendo brincar de casinha com os meninos, como suas vizinhas faziam. Ela ouvia comentários dos meninos que diziam tocar as meninas de uma maneira que ela não gostaria de ser tocada.
Mas com Maressa era tudo diferente. Ela ansiava ver a amiguinha, gostava de seus cachos anelados, de seu sorriso... Não pensava em bonecas. Pensava na amiga.
Ana, a mãe de Bia era costureira e sempre estava muito ocupada. Na realidade, parecia querer fugir da responsabilidade de uma família.
E um dia, se aproveitando do descaso da mãe, Bia e Maressa foram brincar no banheiro.
Na verdade, sempre muito trancada em si mesma, Ana jamais demostrara carinho por ninguém, e Bia não sabia nada sobre sexualidade.
Resolveu tomar banho com Maressa. E ao ver o seu corpinho nu, sentiu vontade de se aproximar, de se abraçar a ele ... E foi durante esse abraço, que ela sentiu a dor de um cinto de couro que sua mãe usava para desferir pancadas em suas costas nuas.
Sua mãe, antes tão sem atenção, naquele dia resolvera procurar por elas. E para desespero de Bia, o escândalo estava formado. Nunca esquecera os gritos histéricos da mãe, expulsando Maressa de sua casa.
Aos empurrões sua amiguinha foi levada para casa, onde todo o ritual se repetiu. Foi a vez de Maressa ser surrada e das duas mães, aos berros, se culparem pela negligência para com as duas meninas.
E à tarde, esse era o principal assunto entre os meninos da vizinhança. As meninas que gostavam de meninas... Nas rodas de fofocas, as mães agradeciam a Deus porque as filhas eram "normais".
O pai de Bia, ao vir do trabalho, fazia do bar a parada obrigatória antes de chegar a casa. E lá, ele soube do que acontecera.
Aquele foi o motivo alegado para o porre. Motivos, afinal não faltavam para ele, que sempre chegava bêbado em casa. E Bia sentiu o peso do braço de seu pai. Ele batia em qualquer lugar, tomado pela raiva e o efeito do álcool.
Envergonhados, venderam a casa e foram embora para São Paulo. Bia nunca mais veria Maressa. Chorando, viu sua infância ficando para trás. Sua vida jamais seria a mesma.