Bônus de Raquel
Cresci em uma comunidade onde havia ladrões e traficantes de drogas por tudo que era lado, e nunca pensei que chegaria onde estou. Graças à minha mãe, que sempre foi minha rainha, minha guerreira, sempre me incentivando a aproveitar todas as oportunidades e nunca me conformar com o meio em que vivíamos. Como não tínhamos dinheiro para pagar os cursos de inglês e outras coisas, aproveitei todos os programas que tínhamos na comunidade e fiz todos os cursos que eram oferecidos.
Consegui um emprego quando fiz 16 anos, trabalhava muito duro, mas nunca parei de estudar. Me formei em Letras e aos poucos fui entrando para o mundo dos livros. Minha casa tinha um monte de livros que eram doados em bibliotecas. Sempre lia, estudava, e, quando surgiu uma oportunidade, comecei a trabalhar em uma editora como revisora, e lá conheci a Nella. Nós não nos demos bem logo de cara, mas com o tempo acabamos ficando melhores amigas e, juntas, conseguimos comprar as partes da editora e ficamos sócias. Até que, em uma noite, quando estava voltando para casa, eu fui violentada.
Sempre tive medo de chegar perto de homens e fiz anos de terapia, até que um dia eu estava lendo sobre BDSM em um site e fui a um clube para conhecer. É claro que, quando conheci, foi bem assustador. Tinha mágoa, raiva e usava o chicote para descontar nos homens o que fizeram em mim. Sabia que eles gostavam de sentir dor e usei isso a meu favor. Toda vez que um cara implorava para bater nele, eu fazia com todo sangue, mas depois, quando ia embora para a minha casa e ficava sozinha, eu chorava.
Fiz defesa pessoal, aprendi a me defender e nunca mais deixei um homem chegar tão perto de mim a ponto de me machucar. E então eu conheci o Davi. Ele era um homem perfeito, meu príncipe encantado. Ele conseguiu me fazer baixar a guarda, e eu fiquei completamente apaixonada por ele, mas sabia que nunca seria possível.
Sempre ouvia que a culpa era minha, afinal eu pedi para ser violentada. Me deixava mal ouvir isso, tive que sair da comunidade com a minha mãe e aluguei uma casa na cidade. Ficamos tristes, mas, cada vez que alguma mulher lá me olhava com recriminação, ficava arrasada. Sofri muito com o preconceito.
A casa em que fomos morar era linda e aconchegante, mas não era a mesma coisa. Aos poucos, o tempo foi passando e chegamos a nos acostumar com a casa e com o novo bairro. Nunca mais aparecemos na comunidade.
Cheguei em casa ainda muito abalada por tudo o que tinha acontecido no clube de BDSM. Davi apareceu com aquele jeito possessivo e me deixou completamente sem reação, tive que me entregar. Fui fraca.
Tudo que eu queria era ouvir a voz de uma amiga, mas olhei para o relógio e vi que era de madrugada ainda, e eu não tinha conseguido dormir. Peguei o celular e, quando vi que Nella estava on-line, liguei para ela.
— Oi, amiga, como está?
— Estou bem, Nella. Fazendo o que acordada a esta hora?
— Estava sem sono, Diogo está dormindo e fiquei escrevendo um novo romance.
— Que bom, amiga, sobre o que desta vez? — perguntei, curiosa.
— Ah, estou escrevendo sobre uma garota que se apaixona pelo irmão da amiga dela.
Senti isso como se Antonella estivesse jogando verde para colher maduro, mas não tinha certeza se ela sabia ou desconfiava de alguma coisa sobre mim. Que eu era apaixonada por aquele gostosão do irmão dela, com certeza eu era. Uma vez, eu o vi sem camisa e fiquei louca, tive um tesão enorme, e, quando cheguei em casa, tive que me tocar para ver se gozava. E, só de me lembrar daquele corpo com barriga de tanquinho, gozei como uma louca.
— Raquel, amiga, acordaaaa — ela gritou, e eu levei um tremendo de um susto.
— Quer me matar do coração, mulher? — gemi, com o coração acelerado, e percebi que meus pensamentos me levaram para longe novamente.
— Você não escutou o que eu estava te dizendo — ela acusou.
Era verdade, não podia ficar pensando no irmão da minha melhor amiga.
Nella sabia o que tinha acontecido comigo, contei para ela o que me ocorreu na comunidade. Me senti na obrigação de contar quando ela dormiu na minha casa e presenciou um pesadelo daqueles horríveis que eu tinha. Minha mãe, que sempre vinha em meu socorro, me abraçava quando eu chorava, mas ela não podia, ela estava viajando com algumas amigas que tinha feito na igreja. Eu estava sozinha com a Nella, que me amparou e ajudou do jeito que eu precisava. Quando ela me abraçou, não vi recriminação, nada. Só vi amor, compreensão, e, pela primeira vez, consegui contar para alguém o que tinha acontecido. E por isso sempre agradeceria à Nella, por ser o que era, uma amiga irmã.
— Desculpa, estava com o pensamento longe, amiga.
— Está desculpada. E você, por que está acordada ainda?
— Ai, menina, sei lá, não consigo pregar o olho — lamentei.
— Então que tal a gente almoçar juntas amanhã, é claro, se der? — ela me pediu, com carinho.
— É claro que sim, amiga, vamos, só me dizer a hora e o local, que a gente vai lá.
— Então tá, faz um chá para ver se consegue dormir.
— Vou, sim, amiga, e você também aproveita para dormir, os livros não vão fugir — brinquei.
— É claro que não vão fugir, é verdade, vou dormir um pouco. Beijos — a gente se despediu, e fiquei ali deitada sem saber o que fazer da minha vida.
Saí da minha cama e fui direto para a sala. Coloquei um filme para assistir e acabei dormindo no sofá. No meio da noite, me peguei tendo um pesadelo, no qual o Davi descobria que eu tinha sido violentada e me desprezava, e, quando acordei chorando, vi que já tinha amanhecido. Sequei meus olhos e tentei não pensar no sonho. Sabia que, como policial, o Davi não me criticaria, mas não queria que ele soubesse o que me aconteceu, nunca.
Fui tomar um banho quente para tirar a tensão do corpo e logo em seguida me troquei e fui para a editora. Eu sabia que estava com a cara péssima, por isso coloquei óculos escuros, para esconder que não tinha dormido nada. Pedi para minha secretária, Anne, para pedir um café forte e aspirina, porque, sem dormir direito, estava com uma dor de cabeça dos infernos.
As horas passaram e, quando me encontrei com a Nella, ela viu como estava e me abraçou forte.
— Amiga, outro pesadelo? — ela perguntou, com pesar.
Não precisei nem confirmar com a cabeça. Desabei novamente e não aguentei segurar as lágrimas, chorei muito, e ela, como amiga, me consolou. Quando finalmente me acalmei, conversamos sobre o livro dela e consegui pelo menos comer algo. Saímos de lá direto para o shopping para comprar um livro que eu estava querendo ler.
— Obrigada por ser essa amiga — falei, quando a gente se abraçou e se separou.
— Sempre, Raquel, pode contar comigo.
— Eu sei.
Com isso, eu voltei para a editora mais animada e enfrentei uma reunião que tinha sido marcada.