Calhou num determinado domingo, de um bardo tocar seu instrumento no festejo dos aventureiros, na taverna do Sr. Seu Ogreiro. Das inúmeras tavernas inclusas no reino denso, copado e de calçado lamoso qual estava, o bardo que a tanto tempo é peregrino a contar-se os meses andados nos fios de seu cavanhaque meio-grisalho, decidiu por fazer desse espaçoso festejo entre paredes o seu sustento momentâneo. E seria o último, antes de embarcar numa estrada desconhecida em direção ao sul, onde o portal de pedras lazurita que adorna a primeira e grande muralha, entrega a vista de um lago imenso que a princípio gostaria de conhecer quando levado a caminho dessa tal via.
Quando entrou, armou-se com seu alaúde ornado de joias baratas e as fez vibrar com o dedilhado mágico. Mágico a fazer um som alto e de melodia macia que se sobressaia às gargalhadas, conversas entonadas e discussões de bebos briguentos.
E não demorou para a chegada de tal animado músico-troveiro irradiar nos olhos das moças, jovens aventureiras em maioria e de tantas categorias, a vontade dos pés que sapateiam e das mãos que se combinam. Homens de todas as idades cantavam em uníssono, dissonantes, as mesmas palavras que as cordas vocais de uma única pessoa os provinha para os ouvidos, fomentando a alegria.
Até o dono do grande estabelecimento, o dito Seu Ogreiro — apelidado em referência ao seu rosto feio que, pelo nariz achatado e lábios extensos demais para um humano, assemelhava-se a um ogro —, suas empregadas trabalhadoras e até as duas infelizes mucamas que deixaram, por obrigação, seus afazeres domésticos para lidar com a clientela, dançaram juntos em tamanha cena de intensa jubilação.
Tarde nessa mesma noite descrita com tanta festança de euforia irrefreável, quando a cerveja mais barata, desperdiçada com os canecos de madeira sendo jogados ao ar, estava se esgotando. Surgiu uma figura capote e encapuzada por couro caro, com gravações a embeleza-lo. O bardo, embasbacado, olhou para ela como se visse uma pessoa inusitada, sendo a primeira em condição singular desse tipo. Além do couro caro, uma aura que se julgaria dificilmente decifrável, devido à ambiguidade da hostilidade de calor lacerante metido junto a oculta e pura nobreza irretocável, a protegia.
Aquela presença que se aproximava do bardo a passos rígidos pareceu não se importar com a música e isso o deixava tenso. Era uma tensão curiosa a se intensificar a cada passo dado.
Uma mão feminina, daquela sob a capa de couro, se estendeu para impedir os acordes do exaltador alaúde e o fez, acabando com o clima festivo. A outra, a mão direita, liberou um carmesim em labaredas belas — era uma flama eriçada de cabelos quando desvestida do capuz, e ela emitia aos olhos tanto ardor pungente!
O bardo estava praticando magias por todo o reino e assim foi rastreado até a taverna por ela, a mulher dos cabelos vermelhos. Afirmou, expondo o primeiro nome: Mariel.
Era um crime a magia aplicada indevidamente para dentro das muralhas. E tentando arranjar uma desculpa, ele se defendeu: disse ser um viajante modesto, que buscava trazer a alegria para pessoas momentaneamente através da música, e assim logo partiria para a estrada, pois não poderia passar a sua mensagem estagnado a uma terra só. Haviam tantos outros reinos a passar!
Poderia, ainda, rejeitar a simples ideia de ter feito qualquer magia, mas não o fez. Anuiu passivamente à afirmação de Mariel no momento que deveria assumir-se inocente e por consequência — por talvez, um inevitável inerente à sua escolha — teve um fim merecido…
Na manhã do dia seguinte, o dia do sol, dia das grandes e, no caso, das pequenas expedições, o bardo sentiu os pulsos desagrilhoados. Ele passou a noite nas grades.
Em sua presença estava Mariel e mais alguns. Dada a oportunidade e fugindo do anonimato, ele se apresentou. O autodenominado Filho de Paiva, porém, limitou a chamarem-no apenas por Paiva e partiu — junto a todos — sobre velhas carroças, a versar notas melódicas e a estudar aquelas intocadas em seu alaúde.
Este era o fim para qual foi o criminoso flagrado. Os demonstrados sortilégios — como dito de forma pejorativa por todos: bruxaria — foram reconhecidos como proeminentes de um indivíduo habilidoso e se fariam convenientes em determinado desafio, portanto: deixar-se aprisionado ou bater as asas para uma aventura?
A natureza de qualquer bardo estaria totalmente centrada a uma opção em controversa escolha. E não tardou nada para aceitar como uma andorinha a migrar em busca de um clima mais ameno que o de um calabouço.
Ademais, logo de início no caminho percorrido, apenas havia certa tensão, temor ao perigo do que enfrentariam, em seu coração.
Acompanhado por Mariel sobre o assento adjacente. A dona de cabelos escarlate que o encurralou no anterior descrito festejo lhe deixaria ficar com a menor parte das prometidas recompensas. Uma rasa punição, ela o disse.
E, por um momento, Paiva questionou-se sobre alguns assuntos. O fato dela não ser coagida a alegrar-se pela música era a questão mais marcante, deixando-o pensativo ao longo da madrugada. Mas a recente curiosidade "Que tipo de reino não pune com a forca e sim com uma punição rasa?" era especial a eludi-lo de outros pensamentos.
Pareceu que sua captora tinha interesses singulares a flexibilizar a lei, deixando toda a nobreza primeira e dificilmente vista como uma casca vazia. Ou era uma dama altruísta em demasia. Indiferente aos fatos, formou uma favorabilidade a ela, deixando de elucidar as dúvidas — Paiva guardou-as como insignificantes, embora curiosas.
Aqueles alguns acompanhando na outra carroça, citados anterior e superficialmente, eram um guerreiro bárbaro e suas machadinhas, uma jovem a afiar as pontas das flechas de uma balestra e um lanceiro esfarrapado. Quando apresentados, não houve nomes por quais chamá-los.
Eram os três de uma tribo ao leste do grande reino — para aonde iam em direção nessa viagem. E lá, onde nasceram, não se dá nomes para esquivar-se do apego e fugir do lacrimejo. São filhos de uma cultura diferente, mas pesou ao bardo eles serem órfãos de nome.
A terça-feira chegou e ao meio-dia as carroças pararam.
Paiva teve um vislumbre de mínimo terror: uma faceta óssea fora esculpida à sua frente, nas montanhas do leste. E por ela se encontrava a fenda que os levaria à missão.
Ao adentrarem pela boca inacabada, esculpida de forma rudimentar, o ar funesto os praguejou com um dilúvio inopinado de inimigos variados e logo inverteu-se para o cheiro da barbárie, com o massacre daquilo que era considerado mau.
A intensa cena se fez com as machadinhas a quebrarem crânios de dezenas de goblins e a desmantelar esqueletos vivos, flechas velozes a abater morcegos de asas desmedidas e a lança certeira a estourar o coração parcialmente pulsante dos parentes mais novos dos esqueletos — os mortos-vivos. Irradiou-se, também, chamas escarlates a expurgar qualquer criatura que não se pôde identificar a tempo.
Dado momento foi um proveitoso e poderoso sismo para a mente do bardo, em amplo sentido e magnitude. E, inserto em tamanha digladiação, quando a visão da entrada obscureceu-se por completo e os monstros robusteceram suas forças, o mar enfurecido do combate se intensificou com as baladas, compostas no momento por improvisação.
Paiva não estava lá para apoiá-los moralmente, como suas habilidades demonstravam. Ele não levantaria a moral de seus aliados com uma canção alegre — o bárbaro, em específico, certamente não precisava de uma. E assim, restava-lhe aprimorar o combate de uma forma rude, para o desagrado do bardo apegado a certas belezas e para o benefício do grupo. Os efeitos do alaúde logo surtiram:
As machadinhas partiram num surto mais furioso, avigorando tamanha barbaridade.
A balestra passou a disparar flechas mágicas, como se não precisasse de munição para suprir-se. Que grande benefício essa mudança!
E o que dizer da lança? Que ao perfurar um coração, sua vontade buscava a quem mais perfurar, como um fantasma temporário. Uma efêmera, descrita pela sua certeira intensidade.
Imperceptíveis eram os efeitos nas chamas — caso existisse algum. Mas, por um talvez afeto ou respeito que não se deve buscar o atrevimento da intromissão, a sua progenitora sentia-se vigorosa como nunca a evadir com facilidade qualquer projétil. Uma aura, além das hostil e nobre, a vestiu.
Só havia um título possível para a balada extraordinária produzida em tal ambiente. E o ousado nome dado foi: A marcha do expurgo!
Seria um equívoco qualificar como perfeita a música feita sob o calor do momento, não era como as marchas harmônicas e tão pouco servia para regular os passos dos companheiros no campo de batalha. Mas, indiferente ao fato, eles andavam sempre à frente, conforme a música, adiante e confiantes.
Quando se depararam frente-a-frente com um salão caliginoso e de profundidade desconhecida, aos confins do submundo cavernoso, entraram destemidos e — a coragem se tornou imprudência! —, logo na entrada, no momento em que as chamas de Mariel iriam iluminar aquele pedacinho apagado do mundo…
Concomitante as labaredas que se espalharam rápida e magicamente, uma insana clava surgiu em mesma velocidade para os golpear e foram todos efetivamente surpreendidos.
Por estar conjurando tantas chamas a ficar desatenta ao ambiente, Mariel foi pega em cheio pelo golpe e jogada contra a parede. Salva pela benção do bardo, essa aura mágica deu um último suspiro ao amortecer o impacto.
Quanto aos mais prejudicados, o lanceiro e bárbaro: o primeiro quebrou alguns membros, foi incapacitado, e o outro, cuja posição estava na espessa extremidade do golpe de superfície espetada, morreu instantaneamente.
Com o momento passado e dito por infelicidades, os integrantes restantes do grupo permitiram-se ver o inimigo entre as chamas escarlates. De estatura um pouco menor à clava que carregava, daria facilmente três humanos em média. As presas amedrontadoras e sua face distorcida o fazia a coisa mais feia já vista. Era um ogro, um dos mais temíveis. Ogros, os horrendos devoradores de homens eram verdes e burros, mas esse lhes deu um golpe de surpresa e possuía uma pele grossa e acinzentada — como um nunca visto antes.
A princípio, o bardo e as duas garotas pensaram ter uma oportunidade. Com auxílio da magia, as flechas penetraram a pele que parecia impenetrável e as chamas o chamuscaram. Porém, era insuficiente, não surtiam efeitos significativos na troca de golpes.
Com uma estratégia de lançar a sua arma sobre o inimigo, o ogro os surpreendeu novamente. A inteligência inesperada da criatura era verdadeira e assim, quando as chamas repeliram a clava jogada, ele os atacou com um chute poderoso.
Ambas as garotas foram pegas pelo golpe e jogadas sobre o bardo, empurrando-o até estatelar-se de fronte no chão.
Foram jogadas com tanta força que após se chocarem, aterrissaram cerca de seis a sete passos atrás do bardo. Foi um impacto capaz de esgotar suas vontades. Elas estavam mesmo bem surradas!
Pôde-se determinar facilmente que, em exemplar situação, um inimigo tão formidável em força bruta, além de outros aspectos, jamais seria superado por apenas aquele bardo. Era o fim.
Mas estar perto do fim abre portas para certos milagres. Ninguém lá — especialmente Paiva, convidado de última hora — selara seu destino.
Citando milagres, diz-se haver uma parte adormecida em cada humano, uma espécie de sentimento semelhante à euforia, limitando-se a apenas despreocupação e somada a uma exímia concentração. E ele os aprimora até o definitivo primor no calor do momento, como se tornar um só com o objeto ou objetivo executado.
Estreando a existência subjetiva. Paiva pode senti-la, uma emoção a arrebatar a sensação de peso, como tomando uma resposta de leveza de cada pedaço de si.
De pouco-a-pouco se levantou, íntegro. E sua visão era do ogro, a pegar a clava para finalizar com tudo.
A situação beirava o impossível: além de sobreviver, deveria proteger as duas logo atrás. Com tal estímulo, então, o bardo concluiu que a sensação era de fato a da esclarecida e incomum euforia. Paiva atingiu a dita simbiose poética de um trovador, revelando a união verdadeira da alma com a música e de seus dedos com o instrumento.
Em sentido de uma bela crença, estava totalmente a favor da esperança nesse último e único momento.
Pondo-se a encarar o ogro rearmado, dedilhou os pequenos acordes. Assim que o fez, a magia se alastrou em tanta amplitude como que querendo ser ouvida por meio mundo e surtiu um impacto físico sobre o temível inimigo.
Com mais alguns dedos, deu vida às armas dos companheiros e lá foram elas, que por vezes se chocavam com a clava ou atacavam pelos flancos.
Com a significativa mudança que caiu sobre Paiva, ele começou a suprimir o ogro cinzento e logo passou também a marchar, encurralando-o.
As chamas quase extintas da exaurida Mariel reviveram-se, queimando como nunca, e trouxeram um carmesim infernal à caverna para revelar com clareza o reptante confronto.
Revidando com os mesmos golpes e as mesmas estratégias já feitas, o ogro irritou-se ainda mais quando, sob a intensificação da barbaridade ogresca, as trovoadas sonoras denotadas por acordes complexos faziam Paiva, o seu alvo, sumir por um instante e voltar em outro estrondo, mantendo-se sempre a sua frente e emanando uma aura ameaçadora como ultimato.
Recrudesceu, não cedeu à hostilidade. Como esperado de um ogro! — Ele é burro, essa é a expressão dita.
Chegado o último ato do embate, com a aproximação furiosa do ogro, Paiva atingiu o seu máximo potencial e a música exacerbada chicoteou a caverna a fazê-la estremecer. Repeliu o monstro em arrancada com a força intangível e levou-o ao chão.
O ser maligno desperdiçou a oportunidade de se retirar, passando a debater-se em livramento da pressão mágica e musical. Não importa da perspectiva que se visse, o confronto se tornou uma execução.
Paiva trouxe as armas — instrumentos mortais! — flutuando-os e a balestra logo foi destruída, a lança alcançou o peito a fazê-lo sangrar, mas um braço exerceu intensa força reflexiva e manteve-se determinado a não perfurarem o coração. Por fim vieram as machadinhas do falecido bárbaro, finalmente elas banharam-se — vingativas! — em sangue. Com muito esforço as lâminas cegadas, pelos crânios que racharam, atravessaram o pescoço grosso, lenta e dolorosamente, determinando o fim de uma luta e resultando em artes criadas, baladas, contos e textos épicos, sobre um não muito reconhecido bardo.
Passando para a outra semana, após a marcha do expurgo, repouso recuperativo e um pequeno ritual por onde os valentes se vela, armaram um pequeno festejo à luz do meio-dia — Para uns de despedida, para Paiva sacra e mágica expedição a ser seguida.
Os nervos do seu Ogregio, enraivecido pela dominação musical, deixaram um estigma quando presenteado com a cabeça do ogro cinzento — e ainda o aceitou… em prol dos negócios! Lhes disse.
Sobre o festejo armado, Paiva tocou música legítima, se esforçou para não influenciar os outros com seu dom. O lanceiro, todo enfaixado, até aproveitou o clima para afagar-se no agradável da cerveja, a substituta da dor.
Quando tudo acabou, em tarde clara com o reflexo do lago recebido através do portal de lazurita, relembraram de um questionamento a se fazer. E a voz de Mariel o alcançou. Suspeitava dele não ter apenas uma motivação para alegrar os outros, como bardo, que essa atitude não era a mensagem passada.
Qual seria a mensagem de um excepcional bardo, afinal, a ponto de ser o ônus de sua viagem de fim indeterminado?
As pessoas esqueceram de aproveitar inteiramente os escassos momentos alegres, e para completar o seu objetivo ele devia esquivar-se de uma permanência. Essa foi a resposta e despedida de Paiva.