Lígia não estava nem um pouco confortável com aquela sensação. Não conseguia dormir de jeito nenhum, tinha medo de que realmente tivesse algo à espreita no meio das árvores apenas esperando a hora certa de atacá-la.
Revirava-se na sua colchonete de pouco em pouco tempo, seus pensamentos estavam sem freio e seu coração batia numa velocidade inigualável a qualquer outro momento em que sua ansiedade atacou. Tinha medo de estar mais próxima da morte agora do que já esteve em toda a sua vida e isso causava-lhe uma sensação aterradora de urgência.
"O que eu vou fazer?" Ela pensava. Tamanha era a pressão que Lígia impôs sobre si mesma que ela sentia não tinha a capacidade de fazer qualquer escolha racional. Por fim resolveu que acordaria Sofia caso alguma coisa estranha acontecesse ali fora das barracas, pois duas cabeças pensam melhor do que uma.
O medo que a garota sentia diminuiu ao perceber que durante a noite o máximo que aconteceria era algum de seus colegas acordar para usar uma das árvores como banheiro. Não demorou muito para que ficasse em uma posição fixa na colchonete ao invés de se mexer em busca de um ponto confortável, as pálpebras já começavam a pesar e aos poucos seus pensamentos tornaram-se sonhos.
Estava em uma praia, provavelmente no litoral norte de São Paulo. Reconhecia as casas da rua detrás da praia, pois era numa delas que a sua família passava as férias. O céu estava cinza e o vento frio cortava a sua pele como cacos de vidro, a água estava tão limpa que podia-se ver o fundo claramente.
Começou a correr em direção ao mar, a areia estava tão macia que parecia que pisava em colchões e travesseiros. A água estava morna, ao contrário do que se imaginaria por conta do vento gelado e pelo céu acinzentado. Quando estava na água, virou para trás e viu a sua mãe gritando alguma coisa do outro lado da praia. As palavras proferidas pela mãe dela não foram ouvidas com clareza devido à distância entre as duas.
—O que que cê disse?!
—VAI ... ... JOÃO ... ... ESTROGONOFE DA VOVÓ ... ... !
—MAS QUE...
—... PORRA FOI ESSA??? - Lígia acorda no pulo sem saber o que o sonho queria lhe dizer.
—Miga, tu tá bem? - Sofia que já estava arrumando-se para sair da barraca levou um susto com a reação repentina da amiga. - Teve um pesadelo, foi?
—Não sei se chega a ser um pesadelo, mas tive um sonho bizarro pra caralho. Eu tava numa praia nadando no mar e do nada minha mãe começou a gritar o nome do meu irmão e alguma coisa sobre o estrogonofe da minha vó.
—Caralho? Que porra de sonho foi esse?
—Sei lá, mas bem que eu queria um estrogonofe pro almoço.
—Eu também, mas não dá pra tê tudo na vida. A gente ainda tá no cu do mundo e precisamos procurar ajuda, não demora muito pra se arrumar e bora que o dia vai ser longo.
—Beleza. - Lígia pega a mala com suas mudas de roupa e escolhe qual usará naquela ocasião.
Resolveu usar uma regata preta com um top esportivo por baixo, um shorts de tactel Adidas e um tênis da Nike. Amarrou o cabelo em um coque e deixou algumas mechas soltas na parte da frente, era o seu charme.
Estava preparada para andar o quanto precisasse até encontrarem ajuda, o que não podia se dizer de Sofia, que repetia o mesmo traje da noite anterior.
—Cê vai ir vestida assim mesmo? Cê sabe que a gente vai andar pra caralho, né?
—Sim, eu vou assim mesmo. Qualquer coisa eu amarro a blusa na cintura e fico só de top, tá safe.
Seus amigos estavam sentados ao redor da fogueira apagada comendo pão francês com queijo branco, alface, tomate, mortadela, maionese e bebendo café com leite.
—Bom dia, povo.
—Bom dia! - Cristina e Almeida dizem em uníssono.
—Bom dia, Sofs. Bom dia, Lígia. - André sai de trás de sua barraca segurando uma camiseta azul escura. Está usando um binder, um shorts jeans cinza escuro e um All-Star preto. - Dormiram bem?
—Eu dormi igual um bebê a noite inteira, mas a Lígia aparentemente não.
—É, eu tive um sonho maluco e acordei que nem doida, foi bizarro.
—Então foi por isso que tu gritou agora há pouco? - André colocava a camiseta.
—Aham, sonhei que tava numa praia e minha mãe apareceu e ficou falando de estrogonofe. Agora eu tô achando engraçado, mas na hora eu levei um susto.
—Gente! Chega de papo, vamo todo mundo terminar de comer logo que a gente precisa pelo menos tomar café da manhã pra ir procurar ajuda. - Cristina adverte os amigos enquanto limpa as migalhas que caíram em sua roupa. - A gente não pode ficar mais um dia aqui senão a gente começa a perder as diárias do Airbnb.
—Por que a gente trouxe as barracas pra acampar se a gente já alugou uma casa? - Sofia pergunta com a boca cheia de pão.
—Porque tinha um baaaaita espaço aberto no terreno da cabana que a gente pegou e dava pra acampar lá. - Almeida responde a garota enquanto verifica se está tudo em ordem com as bagagens que trouxeram. - Vamo torcer pra que não demore pra achar ajuda.
O casal vestia roupas extremamente casuais naquela manhã. Almeida estava vestindo um Abadá da Vai-Vai, um shorts em sarja e um tênis de corrida. Já Cristina vestia uma regata com estampa poá preta e branca, shortinho jeans e o All-Star da noite passada.
Desmontaram as barracas, pegaram as malas e partiram em direção à estrada assim que terminaram o café da manhã. No caminho o grupo conversava sobre coisas da vida de cada um. Almeida e Cristina falam sobre a organização do casamento deles. Sofia, Lígia e André comentavam sobre o filme que assistiram na noite antes da viagem.
—Véi, cês tinham que ter me falado que aquele filme ia ser igual a todos os outros Sexta-Feira 13 que a gente assistiu antes.
—Qualé? Lígia, a Parte 3 é importante, pô. - Sofia fala enquanto amarra a blusa na cintura e tira a camiseta para ficar apenas de top. - O Jason pega a máscara de hockey nesse filme.
—Mas ele é a mesma merda que os outros, só que pior.
—Nossa, sim. Só a Sofia pra gostar desse filme. Por mim a gente só tinha assistido o primeiro, o segundo, o quarto e o sexto.
—Mas por que cê colocou o segundo nessa lista? - Lígia lança um olhar curioso para André. - Ele não é a mesma coisa do primeiro?
—Até que é, mas ele ainda é legalzinho e o assassino finalmente é o Jason.
—Mas aí tu não ia saber como ele pega a máscara dele. Aí não faz sentido o quarto filme ele estar usando ela.
—Sinceramente, acho que fica legal o mistério de não saber como ele pega a máscara. Porque ele já é justamente um dos assassinos mais reconhecíveis do cinema. Geral sabe quem ele é hoje em dia.
—É, real, né? Então o terceiro é bem dispensável mesmo. - Sofia acende mais um cigarro e o trio encerra o assunto ali.
O grupo caminhou cerca de quinze minutos pela floresta. Seguiam em direção à estrada e consequentemente passariam pelo local do acidente. Foram surpreendidos ao verem que o carro de Almeida não estava mais no local, só restavam as marcas de pneu no barro e o vidro quebrado no chão.
—Mas que merda aconteceu aqui?! - Almeida corre até as cicatrizes deixadas no barro. - Como que alguém tirou o carro daqui assim tão de repente?
—Calma, amor, talvez alguém viu e chamou algum guincho pra tirar o carro daqui e levar pra algum pátio e tals.
—Gente, olha, as marcas dos pneus tão levando pra dentro da floresta... - André aponta para o caminho que segue pela esquerda do grupo. - Será que quem levou o carro pode ajudar a gente?
—Não faço ideia, André. Mas a gente não tem muita escolha além de ir até o fim dessas marcas de pneu pra ver aonde dá. O que vocês acham, gente?
O grupo de amigos posiciona-se em uma roda de maneira quase inconsciente. Era costume do grupo se organizar daquela maneira para resolverem seus problemas.
—Acho que é mais fácil a gente achar ajuda seguindo essa trilha do que ficarmos andando no meio de uma estrada deserta por horas. - Cristina olha para os amigos com um quê de preocupação.
—E vocês, menines? O que acham? - Com a expressão mais séria que já fez em sua vida, Almeida direciona a pergunta ao trio para obter um veredicto sobre o que fariam naquele momento.
—Ah, olha, não faço ideia. Talvez dê em alguma coisa como também pode não ser nada e a gente só foi furtado mesmo… - Sofia retirou um cigarro de dentro do maço e colocou na boca, restando-lhe 15 cigarros. - Mas acho que não custa ir olhar, né?
—Concordo contigo, acho que seguir a trilha dos pneus não vai atrapalhar. - Agora que André se manifestou, resta apenas o voto de Lígia para que decidam o que fazer.
Lígia chega em um impasse: não sabe se é seguro seguir aquele caminho mas também não sabe se é seguro seguirem sozinhos na estrada. E se suas suspeitas de que há algo estranho nessa floresta que está a observá-los forem reais? Mas a ideia de passar horas andando em uma estrada sem nenhum indicador de que haveria ajuda não era uma ideia tão atraente assim. Realmente era uma escolha entre o ruim e o não-bom.
—Ah, gente... - A garota quebra o contato visual com os amigos. - Acho que já tá decidido, né? Vamo seguir essa trilha dos pneus mesmo.
—Então tá. Vai ser isso. - Almeida está mais sério do que estaria em uma reunião com os clientes da empresa em que trabalha. - Vamos, povo.
***
Seguiram o caminho e a cada passo que davam eles sentiam que aquela caminhada não teria fim. As horas voavam, a temperatura subia, o cansaço aumentava e seus membros já não aguentavam mais percorrer toda aquela distância.
—Ô Lígia, tu pode me falar que horas são por favor? - Sofia andava abanando as mãos para aliviar-se do calor de Fevereiro.
—Claro, Miga. São… - ela verifica as horas no celular. - Três e vinte seis.
—Caralho, a gente já andou igual condenado e ainda não chegou em porra de lugar nenhum.
—É, então. Parece que tamo andando, andando e só dando volta no mesmo lugar. - Lígia percebe seu estômago roncar. - Gente, cês não acham melhor a gente fazer uma pausa pra comer?
—Nossa, pa caralho. - A fome de André é tamanha que até sua barriga dói. - Cris, você trouxe mais coisas pra nós comermos?
—Trouxe sim, mas acho que é melhor a gente dividir agora porque é a última coisa que a gente tem pra comer. Seria bom a gente guardar comida enquanto não encontrarmos ajuda. Vai que… né?
O quinteto cessa sua caminhada para comerem o almoço. O prato da vez: o mesmo do café da manhã. Restaram mais cinco pães e Cristina repartiu apenas dois entre eles para que sobrassem mais três pães para mais tarde.
—Almeida, o que foi que tu viu que te fez bater o carro?
—Olha, Sofia. Eu não lembro direito, mas acho que parecia um lobo-guará ou alguma coisa assim.
—Hmm. - Sofia apoia o queixo em seu polegar e posiciona seu indicador acima dos lábios enquanto fecha os outros dedos. - Acho que aqui não é uma região de lobo-guará não, hein. Se meus 12 semestres em biologia me ensinaram alguma coisa é que essa espécie vive no Cerrado. Essa parte de Minas que a gente tá ainda é Mata Atlântica.
—Tem algum outro tipo de lobo nativo do Brasil além do lobo-guará?
—Não. Será que não era um cachorro perdido ou outro bicho assim?
—Acho que não. Não sei se um cachorro fica daquele tamanho, ele devia ter um metro e cinquenta.
—Mas nem um lobo-guará fica desse tamanho. - De repente todos trocam olhares confusos entre si. - Tu tem certeza que era mesmo um lobo-guará?
—Absoluta.
Após as palavras de Almeida, apenas os sons da vida local soaram no ambiente. Eles não faziam ideia de que bicho era aquele que fez com que o carro batesse, suas indagações mostraram-se inconclusivas. A confusão do grupo com aquele assunto era tanta que quase passaram despercebidos por uma placa de madeira que camuflava-se em meio às árvores. Estava desgastada e coberta por musgo, mas podia-se ler os seguintes dizeres:
Bem-vindo à Trindade