Kyara virou a noite sentada no sofá da sala, tentando não enlouquecer, assim como em todas as outras noites. Infelizmente, mexer no celular não funcionava tanto assim. Em diversos momentos, tentou cobrir seus olhos e orelhas com sua touca, numa tentativa de abafar o som das vozes aterradoras e parar de enxergar braços e faces desfiguradas no teto. No entanto, os gritos e choros continuavam insuportáveis, como se estivessem dentro da mente da garota; e ao cobrir seus olhos, sua perturbação apenas aumentava, pois tinha medo de que, a qualquer momento, as mãos pudessem finalmente alcançá-la enquanto não as olhava. Apesar de nunca ter sido muito religiosa, também rezou várias vezes – o que, assim como tudo que já tentou, não surtiu efeito algum.
Foi uma noite longa e tortuosa, mas em torno das cinco da manhã, o dia começou a clarear. Gradativamente, as aberrações presentes no apartamento foram sumindo. Fizeram o processo inverso ao de quando apareceram – se desmanchando, se tornando apenas manchas e depois desaparecendo de vez. Não havia rastro algum. Suas vozes foram se tornando cada vez mais baixas, até chegarem ao ponto de serem inaudíveis.
Kyara, ao observar os monstros irem embora, não pode fazer outra coisa a não ser chorar. Por um lado, chorou de alívio ao finalmente se ver livre; por outro, chorou de desespero sabendo que na próxima noite eles estariam de volta. Sem contar que o que estava acontecendo não prejudicava apenas seu sono, mas sua vida como um todo. Nunca foi boa em prestar atenção nas aulas, mas agora se tornara muito mais difícil. Se continuasse presa nessa situação, nunca mais conseguiria se focar em qualquer coisa importante.
Além do mais – por pior que fosse seu sofrimento –, não poderia contar a ninguém, pois com certeza, ninguém acreditaria. Se seus colegas já a achavam meio doida por si só, ao contar a qualquer um sobre as criaturas que enxerga, as suspeitas deles apenas se confirmariam. A jovem também não queria deixar as pessoas preocupadas, achava que tinha de lidar com aquilo sozinha.
Após chorar baixo por alguns minutos, em posição fetal, sentindo-se sem esperanças, enxugou suas lágrimas rapidamente e se levantou do sofá em um pulo.
- Tudo bem... Mais um dia... Eu consigo... – disse a si mesma em um tom de voz fraco e de olhos cansados.
Geralmente, as criaturas apareciam por cerca de duas ou três da manhã, mas dessa vez havia sido diferente. Elas resolveram visitar Kyara logo quando se deitou na cama. Ou seja, nessa noite, a garota não dormiu absolutamente nada. Somente um milagre para lhe manter acordada durante as aulas de hoje.
Kyara deveria se fazer o mais acordada possível antes de sair de casa. Foi ao banheiro, localizado no corredor a frente da sala, e que também dava acesso aos quartos da jovem e de sua tia. Ela tirou sua touca, olhou-se no espelho por um breve momento, abriu a torneira e passou água gelada em seu rosto. Soltou um pequeno suspiro ao sentir o frio em sua pele, esfregou suas mãos nos olhos e deu alguns tapinhas em sua face. Após isso, despiu-se e foi para o banho.
Ao ligar o chuveiro e ter milhares de gotas d'água a molhando da cabeça aos pés, enquanto se lavava, Kyara se lembrou da primeira vez em que viu as criaturas.
Há três semanas, nos primeiros dias de março, em uma noite simples e tranquila como qualquer outra, por cerca de três e meia da manhã, a garota sonhou com o pior pesadelo de sua vida. Ela se viu em uma sala escura e rodeada por caixas de papelão; sua única fonte de luz era o brilho da lua atingindo a janela a frente. Havia fotografias espalhadas por todo o chão, as quais retratavam o que parecia ser uma família feliz. Kyara não entendia o porquê, mas sentia um enorme desconforto e uma forte sensação de perigo só de estar ali.
Cautelosamente, se agachou e tentou se aproximar das fotos para enxergar melhor as pessoas que apareciam, quando de repente escutou um grito de deixar os cabelos em pé.
- ME AJUDE!!!!!
Kyara se virou bruscamente, espantada; sentiu um calafrio por toda a sua espinha. A voz aflita vinha de uma porta marrom a um pouco mais que dois metros de seu lado direito. A garota ficou paralisada por alguns segundos, mas logo se prontificou. Para ela, se havia alguém precisando de ajuda, deveria ajudar.
- ALGUÉM ME AJUDE! ALGUÉM! – a voz gritou novamente.
A jovem correu em direção a porta e imediatamente tentou abri-la, mas estava trancada.
- EI! O QUE ESTÁ ACONTECENDO?! ME DIGA, QUERO TE AJUDAR! – gritou Kyara para o outro lado da porta, enquanto a batia e girava a maçaneta várias vezes.
Contudo, não se ouviu mais nada. Um incômodo silêncio pairou sobre o ambiente. Kyara bateu na porta mais algumas vezes, até sentir um odor estranho no ar. Parou de se mover e encarou os próprios pés, tensa.
Não havia como descrever exatamente, mas era como se fosse um forte cheiro de chorume e comida estragada. O fedor começou aos poucos e foi aumentando cada vez mais. Kyara não aguentou e tapou suas narinas, estava com náuseas e teve o pressentimento de que, se continuasse cheirando aquilo, iria desmaiar.
Subitamente, a garota sentiu uma presença atrás dela. Todavia, não era uma presença qualquer. Era aterradora, desconcertante e obscura. Kyara sentiu uma energia pesada por todo o local, uma dor de cabeça tremenda e mais náuseas ainda, mesmo com o nariz tampado.
Por mais que estivesse apavorada – com olhos arregalados, tremendo, suando frio e respirando ofegantemente pela boca – a garota decidiu que precisava enfrentar o que quer que fosse aquela presença. Fechou os olhos, respirou fundo, apertou seus punhos e rapidamente se virou para trás.
Ao voltar a enxergar, o que viu era algo completamente inesperado. Kyara esperava se deparar com uma pessoa – ou melhor, esperava se deparar com um ser normal. No entanto, aquilo que ela enxergou... Estava bem longe do esperado... Era pior do que pensava.
A assustadora presença se tratava de uma nuvem negra preenchendo quase toda a sala – com vários olhos, bocas, braços e pernas se mexendo incessantemente dentro dela. Instantaneamente, Kyara percebeu que a nuvem era a fonte do odor repulsivo que sentia e, além disso, começou a escutar diversas vozes estridentes saindo daquela coisa.
A cabeça da garota parecia que ia explodir, assim como sentia que estava prestes a vomitar. Ajoelhou-se e pôs as mãos sob os ouvidos. Queria gritar o mais alto possível, mas não conseguia, pois seu estado físico, emocional e mental a deixavam estática.
Em um piscar de olhos, a nuvem se expandiu, consumindo mais a sala e se envolvendo em volta de Kyara. As vozes se tornaram mais elevadas e a visão da garota foi se tornando cada vez mais escura, até o ponto em que não enxergava nada além de uma névoa negra. Kyara sentiu um desespero que nunca sentira em toda sua vida. Apenas alguns segundos a mais e iria desmaiar. Entretanto, antes que pudesse perder a consciência e se estatelar no chão cercado de fotografias, ela despertou.
Kyara se encontrou em sua cama, atônita. Seu coração parecia bater a mil por hora e sua respiração estava ofegante. Sentia uma leve dor de cabeça e, como em seu pesadelo, suava frio. Estava deitada de barriga para cima e com boa parte de seu corpo descoberto; suas cobertas estavam muito bagunçadas.
Então chegou a pior parte. Por mais que Kyara estivesse um tanto aliviada por ter acordado daquele sonho horrível, o terror não havia se encerrado. Foi em questão de instantes até ela se deparar com as abomináveis criaturas no teto de seu quarto. O grito o qual em seu pesadelo não conseguiu soltar, naquele momento se libertou com todas as forças.
Tia Mirela chegou correndo ao quarto de sua sobrinha, quase arrombando a porta ao abri-la, e avistou a garota desesperada, caída de sua cama e olhando para o teto com uma expressão de absoluto pavor em seu rosto.
- KYARA?! O QUE ACONTECEU?!! – exclamou a mulher, a qual se tornou igualmente apavorada.
- O... O... – murmurou Kyara, em choque.
- O que houve?! Eu ouvi você gritar! – disse Tia Mirela rapidamente abraçando sua sobrinha; suas mãos estavam trêmulas, pois era impossível não se assustar com a situação.
- O-OLHA!!! – gritou a jovem, nos braços de sua tia, apontando para o teto de seu quarto. Assim como Mirela, estava com a mão trêmula. O olhar aterrorizado não sumia de sua face.
- ... O quê? Está apontando para o quê? – indagou Tia Mirela, olhando para cima, se acalmando um pouco e se sentindo confusa.
- TEM MONSTROS NO TETO! – afirmou a garota enquanto se agarrava firme a sua tia.
- Kyara... Eu não estou vendo nada...
- COMO ASSIM?! ELES ESTÃO ALI! ALI!!
- Você deve ter tido um pesadelo, mas já passou. Não há nada ali, querida...
- NÃO! VOCÊ NÃO ESTÁ ENTENDENDO! TEM MONSTROS ALI! VOCÊ ESTÁ BRINCANDO COMIGO?! VOCÊ NÃO OS OUVE?! ELES... Eles...
Kyara se interrompeu ao notar a expressão de extrema preocupação no rosto de Tia Mirela; percebeu que estava a assustando. Após alguns segundos em silêncio, somente ouvindo as vozes, sem tirar seus olhos das criaturas acima, inspirou e expirou profundamente e, com o máximo de cautela possível, se levantou. Ainda amedrontada, porém, intrigada, analisou a situação.
- Tia Mirela... Realmente não há nada ali?
- Não, Kyara... Não há nada.
- ... E você não escuta nada também?
- Não...
- Entendo... Não há nada...
- Viu? Seja lá o que for que você viu no teto, não está mais ali. Está tudo bem, Kyara. Deve ter sido um pesadelo terrível... – disse Tia Mirela se levantando também.
- Sim...
Kyara compreendeu um pouco do que estava acontecendo. Percebeu que os braços grotescos acima dela (que inclusive, se assemelhavam muito com os da nuvem negra de seu sonho) não conseguiam alcançar ela e sua tia por mais que tentassem. No entanto, sua principal observação foi que não adiantava de nada apontar para o teto, pois ao que tudo indicava, apenas ela era capaz de enxergar e ouvir aquelas coisas. O porquê não sabia, mas tinha certeza de que, ao se dar conta da preocupação de sua tia, o que menos queria era fazer sua parente pensar que enlouqueceu de vez.
- Tia, pode voltar a dormir, estou melhor agora... Foi só um pesadelo. – disse Kyara tentando parecer calma, ao mesmo tempo em que ainda olhava para o teto, quase que sem piscar.
- Está tudo bem mesmo?
- Sim, mesmo... Me desculpe por ter te acordado.
A garota se virou para olhar sua tia e forçou um pequeno sorriso.
- Que isso, garota! Você não precisa se desculpar, mas devo admitir que quase me matou do coração! Não duvido que o prédio inteiro tenha ouvido o seu grito! – disse Mirela aos risos.
- Heh, foi mal...
- Enfim, se está tudo bem, vou voltar para minha cama.
Tia Mirela caminhou em direção a saída do quarto.
- Boa noite, Kyara. – disse sorrindo.
- Boa noite, tia.
No momento em que Tia Mirela fechou a porta e foi se deitar, o sorriso de Kyara instantaneamente desapareceu. Sua atenção se voltou novamente para as aberrações do teto. Mesmo depois de fingir que estava tudo bem para sua tia, seu medo não diminuíra nem um pouco.
- Não pode ser... Será que eu enlouqueci...? Parece tão real...
A jovem se sentou no chão de seu quarto e abraçou seus joelhos.
- O que eu faço...? – perguntou-se enquanto lágrimas começaram a escorrer de seus olhos.
Aquela noite foi a primeira de muitas. Kyara, desde então, nunca mais conseguiu dormir em sua própria casa.
A garota terminou seu banho, desligou o chuveiro e passou algum tempo olhando para a água sendo engolida pelo ralo. Ela estava perdida em seus pensamentos, refletindo sobre o porquê de estar naquela situação, o que havia feito para merecer aquilo; por que apenas ela enxergava, ouvia e sofria com aqueles monstros.
- Por que eu sou tão esquisita...? – indagou-se em um tom melancólico, mas ao mesmo tempo enraivecido.
Kyara se secou, saiu do banheiro, vestiu suas roupas e pôs sua touca. Decidiu usar outra muda de seu uniforme – uma camisa branca com o pequeno símbolo da escola estampado no peito esquerdo e uma saia azul-escura – e colocou as roupas sujas para lavar. Em seguida, se direcionou para a cozinha, pôs uma chaleira para esquentar e se preparou para passar o café, ainda pensando sobre as noites passadas e as próximas que estariam por vir.
Nessas últimas semanas, o café tem sido um grande aliado de Kyara. Não costumava gostar tanto da bebida, mas aprendeu a gostar assim que começou a tomar para se manter mais acordada. Além do mais, passar café era, de certa forma, terapêutico para ela. Esperar a chaleira ferver, posicionar o filtro de papel no coador, medir a quantidade de pó a ser colocada por pura intuição, despejar a água quente e sentir o aroma do café subindo no ar – todo esse processo, por algum motivo, deixava Kyara mais calma.
Enquanto a jovem tomava sua xícara sentada na mesa e conferindo as notificações em seu celular, Tia Mirela entrou na cozinha dando um longo bocejo e se juntou a sua sobrinha.
- Bom dia! O que aconteceu? São umas seis da manhã ainda, você só trabalha às oito! – disse Kyara intrigada, mas também sorridente.
- Ah, eu acordei do nada. Até dormiria mais um pouco, mas esse cheirinho de café é irresistível! Bom dia. – respondeu a tia calorosamente enquanto pegava uma xícara no armário.
- Faz tempo que tenho passado as manhãs antes de ir para a escola sozinha. Fico feliz que hoje possa estar aqui comigo!
- Mas e você? Ultimamente tem acordado bastante cedo, hein. Espero que realmente esteja dormindo e não mexendo no celular a noite inteira.
- Não, tia, não estou mexendo no celular. Tenho tido um pouco de dificuldade para dormir, só isso. Acordo no meio da madrugada e não consigo cair no sono de novo, por isso acabo dormindo nas aulas.
- Será que não é café demais?
- Eu passei a exagerar no café justamente por sentir sono nas aulas!
- Você deveria tentar chá de camomila.
- A Mônica me deu a mesma sugestão.
- E óleo essencial de lavanda?
- Ela me falou disso também.
- Sua amiga verdadeiramente sabe das coisas!
- Ela é a pessoa mais inteligente que conheço, é o esperado! – exclamou Kyara em tom de orgulho e admiração.
Após tomarem o café da manhã juntas, a garota – agora mais animada e energética – se despediu de sua tia, pôs a mochila nas costas e seguiu para fora de seu apartamento. Chegando ao elevador, percebeu que ele estava no andar de cima e teria de esperar um pouco. Quando a entrada se abriu, Kyara se deparou com um indivíduo de estranha aparência dentro do cubículo.
Era um homem em torno de seus quarenta anos; de estatura baixa, corpulento, calvo e de nariz pontudo. Pelo que parecia, não se cuidava muito bem, pois sua barba era mal feita, e seus olhos escuros possuíam grandes olheiras. Além disso, vestia terno e gravata, mas seu terno estava sujo – encardido e com algumas manchas – e sua gravata desajustada. Contudo, o que mais chamou a atenção de Kyara na aparência daquele homem não foi seu físico ou suas vestes, mas sim o olhar profundamente mórbido que ele expressava em sua feição.
- Oh... Senhor... Sr. Castilho, não? – perguntou Kyara, deixando transparecer um pouco de seu desconforto.
- Sim... – respondeu o homem de maneira seca, com uma voz tão mórbida quanto seu olhar.
- Vai descer também...?
- Sim... – Ele repetiu.
- O-okay...
Kyara se sentiu um tanto relutante, mas acabou entrando no elevador. Se posicionou ao lado de Sr. Castilho e pôde sentir um intenso fedor de cigarro vindo dele. O desconforto era imenso, e o silêncio constrangedor enquanto eles desciam os andares não ajudava.
Sabia-se muito pouco sobre Sr. Castilho. É conhecimento geral dos moradores do prédio somente que ele se mudou para lá no início do ano, que não interage com absolutamente ninguém, que parece estar sempre melancólico e que sai de casa apenas para trabalho ou para ir ao mercado. Kyara o via poucas vezes pelo prédio; sabia quem ele era apenas por boatos – a maioria deles tendo sido espalhados por Seu Luís, o porteiro (ele e Kyara conversavam bastante).
A garota se sentiu cada vez mais constrangida com aquele silêncio ensurdecedor no elevador. Queria quebrá-lo de alguma forma e, ao mesmo tempo, não conseguia deixar de se sentir curiosa sobre a figura intrigante de Sr. Castilho. Decidiu iniciar uma conversa.
- Ahn... Acordamos cedo, hein...? Heh...
- Estou indo para o trabalho, mas quis sair mais cedo para comprar cigarro.
- Oh... Legal...
- Eu havia comprado três maços, mas já acabou tudo...
- Hum...
- Fumei tudo em um dia...
- C-caramba...!
- Pois é...
- Ahn...
- Kyara, não?
- S-sim... Como sabe?
- Seu Luís. Vive me falando de você. Disse que eu deveria ter algumas aulas suas de como ser feliz.
- O-oh... Você conversa com o Seu Luís? – perguntou Kyara meio sem jeito.
- De vez em quando, ao chegar do trabalho...
- Ah... Prazer!
- Prazer...
O silêncio constrangedor logo retornou. Kyara não sabia mais o que falar e optou por desistir, pois de qualquer forma, o elevador chegara ao térreo do prédio. A jovem saiu, mas Sr. Castilho continuou lá, provavelmente porque estava descendo até a garagem.
- Até mais! – disse Kyara acenando exorbitantemente para o homem.
Sr. Castilho acenou de volta como se estivesse com dificuldade ou preguiça de movimentar o corpo, sem dizer nada e com a mesma expressão desanimada no rosto. As portas se fecharam e o elevador tornou a descer.
- Hm... E-ele não parece ser má pessoa! – afirmou Kyara, tentando convencer a si mesma.
A garota se direcionou para a saída do prédio. Infelizmente, outro porteiro estava no lugar de Seu Luís, pois ainda não era o turno dele. Kyara queria lhe dar uma bronca por fofocar sobre ela a outros moradores do prédio, mesmo que fossem apenas elogios. Isso a deixava envergonhada.
Ela deu bom dia ao homem que estava no turno da manhã, o qual retribuiu seu cumprimento gentilmente, e seguiu a caminho de sua escola. O percurso todo demorava em torno de quinze minutos, um tempo que encurtava bastante caso a garota corresse. No entanto, dessa vez, ela preferiu caminhar.
A jovem tinha um gosto muito grande por aquele caminho que tomava com tanta frequência. Tinha o forte hábito de observar tudo que passava por ela durante sua pequena jornada – as calçadas, as ruas, os carros, as pessoas, as casas, os prédios, os postes, o céu – enfim, tudo. A calmaria do ambiente, ainda mais de manhã, deixava Kyara estranhamente feliz.
Então, enquanto passava por um largo muro cinza com alguns arbustos encostados sobre ele, a garota ouviu o som de folhas balançando. Virou-se para trás e percebeu que vinha de uma das plantas; o arbusto estava se mexendo. Kyara parou de andar e fixou seu olhar nele por alguns instantes, até abrir um malicioso sorriso em sua face.
- É você, não é? – perguntou ela, dando risinhos.
Suavemente, descobrindo-se das folhas do arbusto, surgiu um gato branco – de pelos curtos, médio porte, orelhas grandes, focinho rosa e olhos azuis que, talvez, seriam tão brilhosos quanto os de Kyara. Ele se sentou próximo ao arbusto do qual saiu e encarou a menina de volta, balançando sua cauda.
- Ora, parece que nos encontramos novamente. Hehehe...
A garota e o gato se encararam por algum tempo – Kyara mantendo seu sorriso e o animal agora mexendo a orelha direita, a olhando sem piscar. Podia-se dizer que havia uma certa tensão ali. Todavia, quando o gato finalmente piscou, a jovem iniciou seu ataque.
- AHÁ!!
Kyara correu o mais rápido possível para agarrar o felino, mas ele conseguiu escapar com uma rapidez ainda maior. Em seguida, o gato passou por entre as pernas dela e também correu; a menina se virou quase que em um rodopio e apertou o passo atrás dele.
- Ah, qual é? Volta aqui!
Apesar de sua aptidão para corridas, Kyara tinha um pouco de dificuldade em alcançar o bichano. Contudo, conseguiu alcançá-lo uma, duas, e então três vezes. Todas as tentativas de agarrá-lo, porém, foram em vão. A garota continuou tentando.
- Deixa eu te agradar um pouquinho! Toda vez isso! – exclamou Kyara ainda em movimento, começando a ficar ofegante.
A caçada continuou até o gato virar para uma esquina à esquerda. A menina achou que o perdera, mas logo avistou um beco entre dois prédios. Ao averiguar o lugar, se deparou com o animal encurralado por três paredes; o beco era sem saída. No entanto, de maneira estranha, ele parecia extremamente calmo, embora balançasse sua cauda com mais intensidade do que antes. Sentou-se e encarou Kyara mais uma vez, com seus olhos azuis brilhantes e profundos.
- Finalmente, dessa vez você não me escapa! Vem aqui, coisinha fofa! – disse ela se aproximando lentamente, com suas mãos erguidas como garras de um predador prestes a capturar sua presa.
O gato apenas se deitou e rolou no chão, o que a garota interpretou como uma espécie de provocação. Quando chegou a mais ou menos um metro de distância dele, avançou com toda a velocidade para cima do bichano. Estendeu bem os seus braços, para garantir que ele não fugisse de jeito nenhum, e foi com tudo. Não havia como o gato escapar.
De repente, Kyara sentiu que havia agarrado somente ar, o que a surpreendeu. Teria caído de cara no chão se seus próprios braços não tivessem a protegido da queda.
- Ugh... Droga...! – ela resmungou ao perceber que falhara novamente.
- Meow...
Ao ouvir o miado, Kyara olhou para trás, sentou-se no chão e avistou o gato branco logo na entrada do beco, olhando fixamente para a menina e balançando sua cauda como se estivesse se divertindo com a situação.
- O quê? Como?! – Intrigou-se a garota, perplexa.
O animal levantou uma de suas patas traseiras e coçou uma de suas orelhas. Em seguida, deu um último olhar a Kyara e se dirigiu para o outro lado da rua.
- Você pode ter vencido esta batalha e todas as anteriores, mas a guerra ainda não acabou! – exclamou a jovem em tom e gestos teatrais.
Aquele gato branco era uma das principais razões, juntamente com a calmaria do ambiente naquele horário, as quais faziam Kyara gostar tanto de andar pelo caminho até a escola. O mesmo animal aparece a ela quase todas as manhãs, e ela – por não conseguir suportar tamanha fofura – sempre tenta agarrá-lo. Até o momento, nenhuma de suas tentativas obtiveram sucesso. Kyara costuma suspeitar que, ou esse gato é a criatura mais rápida do mundo, ou ele é capaz de se teletransportar.
Após sofrer mais uma derrota para o bichano, a garota – ainda sentada no chão do beco – começou a rir de si mesma. Contudo, percebeu que passara tempo demais caçando o gato, e imediatamente pegou o celular de sua mochila para olhar as horas. Seus olhos se arregalaram.
- AAAAAAAAHH!! VOU ME ATRASAR!! – gritou ela, desesperada.
Kyara abruptamente se levantou e, por mais que estivesse cansada, não tinha outra escolha a não ser correr. Assim, saiu do beco a todo vapor em direção a escola.