Chereads / Manner Of Death / Chapter 1 - Not Me | Episódio 1: O que podemos fazer? | [Portuguese Translation]

Manner Of Death

Leandro_Souza_4191
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Synopsis

Chapter 1 - Not Me | Episódio 1: O que podemos fazer? | [Portuguese Translation]

A tarde parece o início de uma manhã, com o clima ameno do outono. O vento gelado sopra os montes de folhas empilhados nos jardins das várias casas, todas de dois andares e com cercas brancas separando os limites das moradias. crianças agasalhadas brincam e se jogam, espalhando as folhas pelas ruas. Outras passeiam com suas mascotes enquanto os pais as vigiam de perto. O céu nublado sobre a cidade dá indícios do que está por vir dentro de algumas semanas. Pacato, o condado de Fosnny abriga cerca de sete mil moradores e é um dos destinos mais requisitados por praticantes de pesca, devido aos seus lagos que abrigam centenas de peixes. Todavia, nenhum pescador está visitando a localidade por causa do frio que fecha a temporada de pesca da região.

Quebrando a calmaria do condado, uma caminhonete F-250, da Ford, modelo 2008 e com cabine dupla, faz ultrapassagens arriscadas pelas ruas estreitas, sendo respondido por buzinas. O olhar do motorista está fixo na pista, mas não esconde a preocupação que o faz ser imprudente ao volante. Das calçadas, algumas pessoas podem ver o homem careca passando a mão direita no rosto para afastar o suor, mantendo a canhota segurando o volante.

O que ele presenciou mais cedo está gravado em sua memória e o faz não prestar atenção adiante. De supetão, ele pisa bruscamente no pedal do freio e por pouco, não atinge uma mulher idosa que atravessava a rua. O som dos pneus arrastando no asfalto chamou a atenção de outros pedestres que estavam próximos e eles observam a cena. Sob os xingamentos da idosa, o motorista com uma cicatriz no lado direito do rosto se acomoda melhor no banco e respira fundo, buzinando várias vezes. A mulher começa a andar na direção da sua porta, na intenção de repreendê-lo cara-a-cara, mas antes que ela tenha a chance de tocar na janela, a caminhonete arranca e segue pela rua, carregando as folhas caídas consigo.

O veículo só para realmente após virar uma esquina e chegar na frente de uma modesta casa de dois andares, sem varanda. O homem estaciona com as duas rodas da direita sobre a calçada e desliga o motor, desembarcando com seu celular na mão, respondendo às mensagens que já estavam na tela: "Estou saindo de Fosnny"; "Chegarei aí no final do dia"; "Apenas eu e outra pessoa. Nomes: Allen e Millie Holmes", são apenas algumas das respostas que ele dá antes de chegar na porta apressadamente. Allen guarda seu celular no mesmo bolso de onde tirou as chaves da residência e destranca a fechadura já tirando seu casaco verde e o jogando enrolado no chão, no intuito de esconder uma mancha de sangue — ele sabe que esse não é o melhor esconderijo, mas está com pressa demais para levar até a lavanderia nos fundos da casa. Ele caminha pela antessala que separa a cozinha da sala de estar e entra no primeiro cômodo.

— Millie? — ao chegar, ele encontra apenas uma tigela e uma caixa de cereal vazia sobre a mesa. Uma outra, de leite, vazia está caída ao lado, provavelmente por causa do vento que sopra pela janela aberta atrás da pia. Após fechar a ventana, ele sai da cozinha e volta ao corredor, agora seguindo mais para o fundo, chegando nas escadas que levam ao segundo andar.

A segunda porta do corredor que se inicia depois dos degraus possui um aviso de "Mantenha Distância". Dentro do quarto, as paredes brancas estão coloridas pela grande quantidade de pôsteres de bandas de rock. Um tapete oval está largado com metade embaixo de uma cama de solteiro, dando mais espaço para que várias roupas fiquem jogadas pelo piso de madeira. Um espelho preso na porta serve de cabide para alguns casacos e a cadeira da escrivaninha acomoda calças. Chutando as roupas, uma criança pula pelo quarto ao som de "Smells Like Teen Spirit", do Nirvana, nos fones de ouvido conectados ao seu celular. A música está no volume máximo.

A garota magra, de cabelos loiros e cerca de 1,60 de altura passa pela escrivaninha repleta de CDs e fotografias de cantores presas em um quadro com tachinhas e pula na cama com o refrão de Kurt Cobain, não percebendo a porta atrás dela sendo aberta e Allen se aproximando, erguendo o braço direito depois de cruzar toda aquela bagunça. Ao chegar perto o bastante, ele pega o fio dos fones e o puxa, tirando-os dos ouvidos da menina.

— Allen?? — a pequena Millie se assusta com a chegada repentina e acaba pulando pra trás, caindo de bunda no chão e batendo as costas num armário de madeira.

— Para com isso, Millie. Já disse pra não ficar pulando na cama. Agora arruma suas coisas e me encontra lá embaixo. — Allen joga os fones no colchão.

— Já disse pra não entrar aqui desse jeito, caramba. Você me assustou. — ela se levanta com uma mão nas costas.

— Você me ouviu, arruma suas coisas — ele repete, a observando.

— Eu ouvi, mas por que isso?

— Eu explico no caminho. — Allen se vira e caminha até a porta.

— Vamos pra algum lugar?

— Eu disse que te explico no caminho, garota.

— E o que eu levo? — Millie abre o seu guarda-roupas e procura por uma mochila.

— Sei lá, Millie. Junta suas roupas favoritas numa mochila; o que achar que deve levar. Apenas faz isso rápido. — ele sai do quarto, fechando a porta.

Batendo o pé direito no piso de madeira repetidas vezes, Allen olha seu relógio do seu celular e está prestes a subir para o quarto de Millie outra vez, mas para ao ouvir os passos da menina nos degraus. Assim que ela chega, o homem a vê trajada com um moletom vermelho por cima de uma blusa preta cuja logo da banda estampada pouco lhe interessa. A mochila em suas costas aparenta estar lotada e ela amarra o cabelo enquanto caminha até Allen, reparando no casaco embolado em um canto da antessala. Desconfiada, ela o encara:

— Hm, deixa eu adivinhar... você tava trabalhando, aí deu ruim e agora vamos fugir?

— Não, nada disso. Apenas vamos. — ele bloqueia a tela do celular e o coloca no bolso direito da calça, abrindo a porta e pegando suas bagagens.

— Espera, Allen, você não vai me contar? Sério? — ela o segue.

— Por que? Tá com medo? — o homem chega na caminhonete e abre a porta do passageiro, colocando suas bolsas no assoalho do veículo.

— Sabe que não tenho medo, só tô achando estranho você chegar assim e falando que a gente vai sair. E ainda tem o sangue na sua camisa.

— Ei, fala isso baixo! — Allen se vira, a olhando. — Você não tem com o que se preocupar. A gente vai pra Denverport, você sempre quis ver como é lá, não? Agora tranca a porta. — ele tira as chaves do bolso e as joga na direção da menor.

— Tá falando sério? — Millie sorri e pega o maço no ar, se virando para a porta e a trancando, correndo para a F-250 logo em seguida.

— Mas a gente não vai ficar muito tempo, vai ser só uma passagem pra você ver como é o lugar. — o homem careca dá a volta na caminhonete e chega na porta do motorista.

— É, eu sei. Lá também é onde tá tendo um surto maior daquela gripe. — Millie chega e abre a porta atrás da do passageiro e empurra suas bolsas no banco, embarcando.

— Por isso que vai ser uma passagem rápida. — Allen fecha a porta da caminhonete e encaixa a chave na ignição, colocando o cinto de segurança. Ele observa Millie fazer o mesmo e pôr os fones em seus ouvidos.

Ele liga a F-250, engata a primeira marcha, olhando uma última vez para a sua casa antes de fazer o veículo andar.

Já é quase fim de tarde e a caminhonete ainda segue estrada rumo a Denverport. O sol não brilha mais na mesma intensidade e a temperatura vai caindo aos poucos. O asfalto está coberto de folhas, que são espalhadas conforme a Ford vermelha avança. Millie permanece com sua visão na janela, distraída com as vastas plantações de milho na margem direita da pista. Em seus ouvidos, escuta "Caraphernelia", do Pierce The Veil. O moletom está jogado sobre a bolsa ao seu lado e ela apoia o queixo na mão, com o cotovelo no encosto da porta. A garotinha está perdida em seus pensamentos, só notando Allen quando este ergue o braço direito para chamar sua atenção. Ela pausa a música no celular, finalmente olhando para o homem.

— Oi? — ela afasta o cabelo do lado esquerdo, o pondo atrás da orelha e tirando o fone.

— Até que enfim, achei que ia precisar gritar. Tá com fome? — indaga, alternando entre olhar a menina pelo retrovisor do para-brisas e a estrada adiante.

— Claro, Allen. Você não trouxe o almoço hoje e aquele restaurante de beira de estrada que paramos tinha uma comida horrível — ela fala entonando seu desprezo pela comida e volta a ver a paisagem pela janela, mas de vezem quando, o olha de soslaio.

— Logo a gente chega em Denverport. Vou parar em um mercado e compramos comida. — ele pisa um pouco mais forte no acelerador.

— Tá, mas ainda não entendi por que saímos de casa; você não me explicou nada. Se não tão atrás de você de novo, o que houve?

— Não. Quando chegarmos, eu te explico tudo.

— Chegarmos em Denverport? — ela volta toda a sua atenção ao motorista.

— Não, você vai ver. Volta pras suas músicas. — Diz Allen, focando totalmente na estrada.

Millie coloca o fone novamente e dá play no reprodutor de músicas. Dirigindo, Allen passa ao lado de uma placa, indicando que a capital do Estado de Finger está à 20 quilômetros de distância.

A F-250 já não pode mais ser visível, quando uma pessoa sai da floresta, pela margem esquerda. Porém, esse homem em especial não parece estar normal: embora esteja usando uma blusa social azul, com uma gravata vermelha, o traje está todo esfarrapado e o indivíduo está vacilante, com as os sapatos sujos de lama. A costura do tecido da sua calça na perna esquerda está rasgada e suja de sangue, que mancha toda a vestimenta e deixa um rastro no asfalto. Seus olhos estão leitosos e opacos, não piscando em nenhum momento. O único barulho que ele emite são alguns grunhidos e gemidos baixos, sem se incomodar com as moscas que o rondam durante sua travessia pela pista. Ele olha para cima de uma vez, ao ouvir alguns pássaros cantando enquanto voam, mas logo segue seu trajeto até o outro lado da pista.

O indivíduo moribundo é apenas o primeiro de uma enorme multidão, todos nas mesmas condições, mas alguns estão com agravantes, como membros faltando ou pendurados por pedaços de carne e pele. Todos seguem sem se importar com o redor, cruzando o asfalto e entrando nas plantações de milho na outra margem.

***

Denverport ganhou o título de "A Cidade Mais Limpa" por ser um destaque no país pela sua produção de energia eólica e solar, tendo várias usinas destes tipos espalhadas por seus condados e em campos que também pertencem à cidade. Quase todas as casas são abastecidas com energia limpa. Além disso, a metrópole possui um sistema de esgoto que é elogiado não apenas nos Estados Unidos, mas em todo mundo, por se tratar de uma complexa rede de tubulações que levam para seis enormes estações de tratamento de água.

A única fonte de poluição que existe na cidade provém do seu trânsito, onde veículos de passeio e o transporte público de ônibus rodam 24 horas por dia, 7 dias por semana. Nesse momento, não é diferente: o trânsito da cidade se encontra movimentado, devido a ser o horário em que as pessoas voltam às suas casas após concluírem o expediente nos seus empregos. A caminhonete de Allen é apenas mais um veículo no mar motorizado de Denverport, mal passando dos 10 quilômetros por hora.

— Humpf... — ele resmunga e bate de leve no volante, assim que vê o carro à sua frente freando outra vez — eu devia ter dado a volta. — olhando o relógio do GPS no painel da caminhonete e vê que está marcando 18:53, horário local.

— A gente tá muito longe de uma lanchonete? Não tô mais aguentando a fome. — Millie deixou o celular com os fones no banco há um bom tempo e agora observa os prédios da cidade pela janela, com as mãos na barriga.

— Calma, eu vou virar em um cruzamento e ir pelos subúrbios. Vai ser mais demorado, mas vamos pegar menos trânsito e talvez tenha algum lugar assim.

— Tá bem.

A garotinha mantém o olhar nos grandes edifícios de Denverport. Millie sempre morou em Fosnny, onde o maior prédio tinha apenas três andares e era seu lugar favorito, pois sempre subia até o topo pelas escadas externas para observar o pôr-do-sol. Por ser sua primeira vez em uma cidade grande, ela fica enfeitiçada com as monumentais construções de 60 andares, que só via antes pela televisão ou em fotos de revistas. Alguns helicópteros também cortam o céu, enquanto luzes de aviões piscam centenas de quilômetros acima.

A quantidade tremenda de veículos também faz seus olhos brilharem e nas calçadas, centenas de pessoas caminham por entre lojas e outros estabelecimentos, contribuindo para a falta de espaço. São mais de 10 milhões de pessoas vivendo apenas na capital que é um destino muito cobiçado por pessoas de todo o país, que buscam uma chance de melhorar de vida.

Allen para a Ford em um semáforo e Millie gruda seu rosto na janela quando vê um trem parando em uma estação, cerca de vinte metros à frente, onde vários passageiros estão esperando o embarque. A máquina branca de dois vagões aguarda todos entrarem e segue pelos trilhos, passando pela F-250 e ganhando velocidade, subindo um viaduto feito exclusivamente para ele, a fim de não atrapalhar o trânsito de carros, ônibus e motos. Os olhos da criança brilham ainda mais com a cena e Allen a observa pelo retrovisor, vendo-a enfeitiçada pelas vistas da cidade. Quando o sinal fica verde, ele segue caminho.

A infância de Millie foi muito conturbada: sem nunca ter sabido quem são seus pais, a menina cresceu nas ruas ao lado de mendigos e drogados até os 11 anos, quando Allen lhe encontrou e lhe ofereceu o mínimo de afeto que nunca havia tido, além de ter lhe dado uma educação bem básica nos últimos três anos.

Todavia, ele também era muito rígido com a garota, lhe ensinando técnicas de defesa, que ele também usava como modo de "disciplinar" a jovem sempre que ele a pegava fumando cigarros — vício que ela adquiriu do convívio nas ruas, onde traficantes usavam a menina para buscar e entregar drogas entre seus pontos de venda. Mas na base dos seus métodos, que basicamente consistiam em deixar Millie imobilizada por um determinado período, forçando alguma parte do seu corpo. Dessa forma, ele vem conseguindo mantê-la longe do vício já faz mais de um ano. Mesmo tendo lhe dado seu sobrenome, os dois nunca agiram como pai e filha, pois Allen não aceita ser chamado assim.

— Finalmente — diz o motorista, saindo da rodovia e entrando em uma rua praticamente vazia, com apenas alguns carros estacionados enquanto ele trafega. O aparelho de localização calcula a nova rota.

— Olha ali! — Millie solta o cinto de segurança e baixa a janela, pondo a cabeça para fora e apontando para uma mercearia.

— Já vi, já vi. Vamos dar uma passada lá, mas volta pra dentro do carro. — Allen reduz a velocidade e segue dirigindo devagar, até parar em frente à mercearia.

— O que vamos comprar? — pergunta Millie, puxando o pino que trava a porta e olhando o motorista.

— Você escolhe. Só pega umas latas de energético pra mim, acho que vamos viajar a noite toda — responde Allen, puxando a chave da ignição.

O interior da pequena mercearia é limpo e organizado. No balcão, o gerente embala as compras de um dos clientes enquanto outras pessoas colhem os produtos que estão entre os corredores das três filas de prateleiras, com seis geladeiras do lado esquerdo do estabelecimento e um açougue ao fundo. Allen abre a porta e Millie entra na frente, já pegando uma cesta e indo direto para a prateleira onde estão os biscoitos e salgadinhos.

A menina imediatamente carrega a cesta com doces, biscoitos e outros vários pacotes de comidas gordurosas, antes de ir até as geladeiras, para buscar caixinhas de sucos variadas, refrigerantes, garrafas d'água e os energéticos que Allen pediu. Enquanto isso, o homem fica perto do balcão, mas sem tirar os olhos dela. É então que um dos outros clientes pede para o balconista aumentar o volume da TV que está presa acima de uma prateleira e eles ficam prestando atenção no noticiário. Até Allen dirige os olhares para os dois apresentadores na tela:

— Hoje chegaram mais três voluntários ao CCD, vindos de Nova York, para realizarem testes sobre como a nova cepa de gripe age no corpo humano. Agora, segundo dados da OMS, todos os cinquenta Estados americanos já registraram juntos, mais de cem mil casos da Influenza-2, que vem causando a pandemia severa de gripe. Na África, hoje, o Egito decretou Lei Marcial e agora é o sexto país do continente e do mundo, a entrar nesse regime. O CCD de Atlanta, em parceria com o Laboratório de Virologia de Wuhan, na China, emite boletins sobre a pandemia à cada duas horas e informaram, no último, que o vírus vem sofrendo rápidas mutações, o que pode atrasar as pesquisas para o desenvolvimento de uma vacina — diz o primeiro apresentador, de cabelo castanho escuro.

— Sim, Hector. E indo agora para as notícias de Denverport, as denúncias sobre ataques de canibalismo cresceram cerca de vinte e três porcento, com destaque para o ataque que aconteceu hoje durante o comunicado do prefeito Joel Birxton. Mais informações, você assiste na nossa versão das onze e meia, pois o conteúdo da matéria é bem forte. Voltando à pandemia de Influenza-2, Denverport recebeu hoje, a mando do governador William Teich, vários esquadrões do exército para realizar a quarentena na cidade, em meio ao discurso antipandemia do político eleito da capital, que se mostra completamente contra o que ele chamou de "ditadura". Mesmo assim, as saídas da cidade vão começar a ser fechadas a partir da meia-noite. Só poderão deixar a capital, pessoas com autorização — diz o segundo apresentador, mais velho e com um bigode farto.

— Merda... — Allen sussurra para si mesmo, pensando sobre o cerco que vai fechar Denverport. Ele procura Millie com os olhos, para que possam sair de lá o mais rápido possível, sem perceber que ela já estava na sua frente.

— Terminei. — a menina mostra a cesta cheia com as coisas que ela queria e os energéticos.

— Ah, ok. — ele suspira aliviado ao vê-la e tira a carteira do bolso enquanto o balconista passa os produtos pelo leitor de código de barras.

— Que situação essa, hein? Fechar todas as saídas por causa de um filho da mãe que não leva essa doença a sério — diz o atendente, virando o monitor, mostrando o valor da conta.

— É, não vai demorar até mandarem as pessoas não saírem de casa por nada.

— Mas também, isso tudo é culpa do Birxton. Se ele e toda a porcada política do país tivessem levado isso a sério, talvez as coisas não estivessem chegando nesse nível... admito que é bom não ter fechado durante essa crise, mas mesmo assim, é um risco a mais que tô correndo.

— E, com certeza... — Allen tira as cédulas da sua cartela.

Assim que ele efetua o pagamento, quatro viaturas da polícia passam em alta velocidade na frente do estabelecimento, com as sirenes e os giroflex ligados, seguindo o mesmo caminho que ele vai fazer em breve.

— Já é a quinta vez que passam por aqui só hoje, devem estar indo atender outra chamada de ataque — comenta o balconista após receber o dinheiro.

— Cidades grandes são assim mesmo? — Millie olha o homem.

— Bom... geralmente não. Mas ontem e hoje, a polícia vem tendo dificuldade pra controlar a situação. Talvez agora que o exército tá aqui, isso pare. — o atendente de pele morena e com dreadlocks põe o troco de Allen e começa a ensacar as compras.

— De qualquer forma, vou tentar sair de Denverport antes que fechem tudo — responde Allen.

— Se você quiser uma dica, procure um posto e encha o tanque. Nas manifestações políticas, o Joel mandou fechar postos e oficinas, só pras pessoas não saírem.

— Obrigado, nem lembrava disso. — Allen pega as sacolas e sai da loja com Millie.

— Como assim fechar a cidade por causa de uma gripe? — a criança o olha, depois de saírem da mercearia.

— É uma tentativa de conter a doença; impedir que se espalhe. Querem deixar os doentes presos pra que eles não saiam. — ele se aproxima da F-250 e abre a porta de Millie.

— Entendi, eu acho. — a menina o ajuda a guardar as compras.

Assim que eles terminam de pôr as sacolas dentro da caminhonete, Millie põe o pé direito dentro do veículo, mas para quando escuta o som dos pneus de um ônibus derraparem na pista. O veículo que seguia no sentido contrário ao das viaturas, vira bruscamente para a direita e invade calçada do outro lado da via, se chocando contra um poste. O impacto faz a frente do coletivo se dobrar ao redor da pilastra de concreto e os passageiros voarem dentro do veículo.

— Droga, temos que fazer algo pra ajudar! — Millie sai da caminhonete, para dar a volta na mesma, mas é impedida por Allen, que a segura pelo antebraço.

— Não! — ele recua alguns passos, ainda segurando a menina, ao ver que os cabos elétricos do poste atingido se soltaram e começaram a jogar faíscas por todos os lados.

A rua onde eles estão fica parcialmente escura e um dos fios cai sobre uma poça de gasolina, que vazou do tanque do ônibus. Com a combustão iniciada, o fogo rapidamente queima sobre o combustível e atinge o tanque, o explodindo e fazendo a carcaça do ônibus dar um pequeno salto. Os passageiros que ainda estão vivos se desesperam, conforme seus corpos começam a ser consumidos pelo fogo.

— Merda, Allen! Liga pros bombeiros, não podemos ficar apenas olhando isso!! — Millie tenta de soltar, mas Allen aperta seu braço.

As janelas do coletivo vão se quebrando aos poucos devido ao calor, enquanto outras explodem sozinhas e os passageiros pulam do veículo, caindo no asfalto e se debatendo, dando gritos agonizantes enquanto seus corpos queimam. Porém, algumas pessoas parecem não se importar com os ferimentos e o fogo, e se levantam como se nada estivesse acontecendo, emitindo grunhidos roucos, começando a andar cambaleantes na direção da F-250.

O balconista da mercearia rapidamente se tranca dentro do estabelecimento junto com os outros clientes, segurando uma espingarda pequena e observando a cena, assustado.

Allen puxa Millie para perto da caminhonete e a empurra para dentro, fechando a porta traseira logo em seguida e dando a volta no veículo pela caçamba, levando a destra até a parte de trás do seu cinto e puxando uma pistola Taurus .40 e, assim que tem mira, aperta o gatilho e atira na cabeça do sujeito em chamas mais próximo. A bala atravessa seu globo ocular esquerdo e finda eclodindo na nuca. O corpo do homem cai espalhando algumas chamas que se apagam no ar e os demais passageiros avançam na direção do tiro. Allen entra na caminhonete e liga a chave na ignição, ouvindo o rugido do motor logo em seguida.

Millie observava tudo pela janela do lado esquerdo e fica petrificada com as cenas. Ela só se afasta quando uma mulher sem um dos olhos e a mandíbula quebrada começa a esmurrar o vidro. O fogo consome seu corpo e as chamas crepitam em seu cabelo enquanto pedaços de pele queimada caem do seu rosto, junto de filetes de sangue escuro. A janela trinca levemente com o impacto da criatura mórbida.

— Allen!!! — a criança grita de pavor.

— Merda! — ele engata a primeira marcha e sai em disparada, derrubando a mulher e mais duas pessoas que esmurravam a caminhonete.

Por um tempo, os dois ficam em silêncio dentro da cabine da caminhonete que, embora o som do motor seja alto, não os impede de ouvirem tiros isolados e sirenes por todos os lados. A quantidade de helicópteros no céu aumentou assustadoramente e um novo aparece com poucos minutos de diferença com relação ao anterior. Apreensivo, Allen olha Millie pelo retrovisor e a menina parece estar chocada com o que viu, encolhida no banco e abraçando os joelhos.

— Millie?

— O que tá acontecendo? Você matou aquele homem. Ele parecia ser um... Mas aquela mulher, o que tá havendo com as pessoas? — ela diz em uma voz fraca.

— Não são mais pessoas.

— O que são então? — Millie afasta uma mecha do seu cabelo para trás da orelha e o olha.

— Mortos-vivos.

— Não sacaneia, Allen! — a menor fala indignada. — Isso de morto-vivo não faz o menor sentido. Não tem como alguém morto sair por aí andando. Nem quando eu tinha onze anos, acreditava nas histórias de que as pessoas que você matava eram monstros. Não vou acreditar nisso agora!

— Tô falando sério! Essa gripe que todo mundo vem pegando não é uma gripe comum!

O tom de voz dele faz Millie se encolher no banco novamente, percebendo que ele está realmente falando sério.

— O que quer dizer com isso?

— Seja lá como essa doença age, ela mata as pessoas e, depois de um tempo, o morto volta à vida, mas não sendo mais ele mesmo. Os jornais querem fazer as pessoas acreditarem que vai ficar tudo sob controle, mas não vai... Essas pessoas lá do ônibus estavam mortas. Não sei como essa merda funciona no começo, mas se eles te mordem, arranham, ou se uma gota de sangue deles conseguir entrar em contato com você, você morre e volta sendo um deles. Seu único desejo é literalmente comer os vivos e qualquer outro animal. Sei que parece coisa de filme, mas é a vida real, Millie.

— E como você sabe disso? — ela franze o cenho.

— Uns amigos que estão no nosso destino me avisaram. Eu também não acreditei quando eles me falaram... só fiquei crente disso quando vi com meus próprios olhos hoje cedo.

— Por isso que você chegou em casa apressado, me mandando arrumar minhas coisas?

— Exatamente. Não contei nada antes pra não te deixar com medo.

— Não funcionou muito bem. — ela o encara pelo retrovisor.

— Funcionou até agora.

— Tá, tá... e o sangue no seu casaco?

— Eu matei um deles. Não tava com minha arma e tive que usar um tijolo. O sangue espirrou no casaco, apenas.

— E pra onde estamos indo, Allen? Por favor... me fala.

— Tá bem, estamos indo pra-- — a buzina de um carro interrompe Allen. Ele só tem tempo de ver os faróis à sua direita antes do Ford Crow Victoria branco se chocar com tudo contra a lateral traseira da caminhonete. O impacto faz a F-250 virar 180° de uma vez e seu pneu traseiro estourar, erguendo a carcaça do veículo, que capota duas vezes até parar em pé, ao se chocar com a lateral em um poste. Fluidos começam a vazar da caminhonete, que está com seus dois ocupantes desacordados.

***

Allen acorda sob os sons de sirenes e buzinas distantes, desnorteado e com dores por todo o corpo, principalmente na sua perna esquerda, que ficam mais fortes depois que ele rasga o airbag com as mãos e tem espaço para alcançar o joelho esquerdo e sente o osso deslocado. Olhando ao redor, ele pega o tecido do airbag e o coloca enrolado na boca, respirando fundo e pesado, firmando as mãos em volta do joelho e o girando de uma vez, colocando o osso novamente no lugar sob um som arrepiante. Seu grito é abafado pelo tecido, que é cuspido logo em seguida e ele fica arfando, com a testa sobre o volante.

Denverport já está afundada na noite escura, mas a maioria dos postes de iluminação estão funcionando. Allen olha para a sua direita e pode observar o carro que se chocou contra sua caminhonete, parado a cerca de trinta metros. O corpo do motorista foi arremessado no momento da batida e está despedaçado pela estrada — suas pernas estão próximas da calçada, enquanto o resto do corpo está próximo do cruzamento onde aconteceu o acidente. Assim que recobra todos os sentidos, a primeira preocupação de Allen é olhar para o banco de trás, onde Millie está ainda desacordada. A menina caiu deitada sobre o banco com as sacolas de compras espalhadas.

O homem solta o cinto de segurança e abre a porta, que se desprende do resto da F-250 e cai na calçada, fazendo o barulho ecoar por toda a área. Assim que ele pisa com a perna esquerda, a mesma falha e o faz ir de encontro ao chão, mas, ignorando a dor latejante, ele se levanta e se vira para a porta atrás da sua, a abrindo com força e depois tirando a menina de dentro do veículo.

— Millie...? Millie? — depois de encostar a criança na lataria amassada, ele dá tapinhas na sua bochecha direita e vê o pequeno corte na sua testa fazendo um caminho de sangue já seco pela lateral do seu rosto. Sua orelha direita também está vermelha pelo fluido.

— O quê... — a menor resmunga e leva a mão esquerda à cabeça, começando a sentir as dores.

— Temos que sair daqui. Achar outro carro, agora. — Allen permanece atento e não acha mais nenhuma pessoa além do outro condutor em pedaços. Também não há carros por ali.

— Meu pulso... — Millie segura seu pulso direito, quase chorando de dor, olhando para Allen.

— Vamos cuidar disso, mas temos primeiro que sair daqui. — ele pega as coisas que Millie comprou e abre a mochila da menina, tirando boa parte das roupas e dando espaço para guardar a comida e as garrafas d'água.

Entregando a mochila dela, ele pega a sua também e puxa o celular do bolso, vendo que são 21:00 em ponto. Porém, ele joga o aparelho no banco da caminhonete quando consta que o mesmo está sem sinal. Os dois colocam suas mochilas nas costas e começam a andar pela rua.

Allen só esteve em Denverport três vezes e não conhece muito bem as saídas da cidade. Ele sabe que só tem mais três horas para deixar a capital, mas não faz ideia de como fazer isso sem um mapa. Suas linhas de pensamento são quebradas pelo grito de Millie, que cai no asfalto e se arrasta para longe do busto do motorista que bateu na caminhonete deles.

— Millie?! — Allen se aproxima dela, lhe ajudando a levantar.

— Ele... ele tá vivo?! — a criança aponta para a metade superior do homem, que tenta se arrastar pelo asfalto com seu único braço bom. O rastro de sangue é enorme, e mais fluído escapa por suas entranhas e do corpo como um todo. Seu rosto está totalmente desfigurado, tendo apenas um dos olhos saltados para fora. O outro globo ocular deu lugar a um enorme buraco, e seu nariz, assim como a mandíbula superior, estão afundadas no rosto em carne viva. Seu braço direito, quebrado, tem o osso atravessando a manga da blusa social marrom e o topo da sua careca está vermelho devido ao sangue.

— Caralho... — Allen observa os restos mortais se mexendo e emitindo grunhidos mais grotescos ainda, por estar com a boca constantemente vazando sangue. — Vem, temos que sair desse inferno. — ele puxa a menina em estado de choque e os dois seguem pela avenida deserta, se afastando do cadáver.

Denverport passou de estado normal para calamidade pública: vários cogumelos de fumaça sobem ao céu, buzinas e alarmes de carros podem ser ouvidos ao longe e os sons de tiros e gritos de pessoas parecem ficar mais altos conforme o tempo passa. Andando com sua pistola em mãos e Millie em seu encalço, Allen para próximo a um cruzamento, quando consegue ver algumas pessoas saqueando uma loja de eletrônicos. Mantendo Millie atrás de si, ele ergue o cano da Taurus, se escondendo na sombra de uma lona com a menina. Ele cogita voltar alguns quarteirões e contornar essa parte da cidade quando, de repente, uma viatura da polícia surge com a sirenes ligadas.

— Merda! São os tiras! — diz um dos saqueadores, vestindo apenas uma jaqueta preta sem mangas, e aberta, exibindo seu tórax peludo. Ele ajuda a colocar uma TV na van do grupo.

— Bota esses filhos da puta pra comer chumbo! — outro ergue uma Uzi e começa a abrir fogo contra o veículo. Os demais também sacam suas armas e fazem o mesmo, crivando a viatura de tiros. O para-brisas dianteiro é destruído e os policiais ali dentro são mortos com dezenas de disparos enquanto os bandidos riem.

No seu esconderijo, Allen olha para a menor e faz um sinal de positivo com o queixo, saindo das sombras o mais rápido que consegue, com sua perna machucada. A menina loira o segue de perto e os dois atravessam a rua enquanto os saqueadores estão distraídos verificando a viatura. Assim que os bandidos pegam as armas dos policiais, um deles olha para o lado esquerdo e grita para os demais.

— Sujou! Têm canibais vindo e são um monte!! — ele então se junta aos seus companheiros e entra na van, saindo. Allen e Millie também já desapareceram da área.

Os dois entram em um pequeno beco entre dois prédios residenciais, um local bastante escuro, mas que garante que eles não sejam vistos por nada e nem ninguém. Quando eles estão quase na metade do trajeto, Allen sente uma mão puxando seu casaco. Ao parar e olhar para trás, vê Millie o segurando com a canhota.

— Allen, meu pulso... — a garotinha solta algumas lágrimas de dor.

— Tá bem, vem cá — ele fala e abeira Millie, tirando sua mochila das costas e se abaixando para olhar seu pulso. — Não o quebrou, apenas deu um jeito nele... a dor vai passar. Só… precisamos de gelo. — ele segura o antebraço da menor com cuidado.

— Tá — Millie fala com mais calma e Allen se põe de pé novamente.

Sem que nenhum dos dois perceba, emergindo da escuridão profunda do beco, uma mulher de aproximadamente 30 anos que estava encostada em uma caçamba de lixo atrás deles se levanta e estica seu braço direito, agarrando Allen pela manga do seu casaco e o puxando. O homem sente a pressão da mão morta sobre seu ombro esquerdo, bem como suas unhas que não perfuram sua carne devido às duas camadas de roupas que ele veste, mas não consegue reagir pois sua perna falha novamente e ele é puxado para trás, permitindo que a mulher reanimada consiga cravar os dentes em seu ombro. Ele e Millie gritam enquanto a criatura prossegue com o ataque, atravessando com os dentes o casaco junto da blusa e ao sentir sua carne sendo puxada Allen joga seu corpo e o da mulher contra a parede.

Sendo pressionado contra os tijolos, o monstro puxa sua cabeça para a direita e consegue finalmente arrancar um pouco da carne da sua vítima. Sentindo a adrenalina, Allen se liberta das mãos putrefatas e se vira para a mulher, já encostando o cano da Taurus na sua testa e apertando o gatilho. A parede atrás do cadáver reanimado se colore de vermelho escarlate e o corpo desliza para baixo e cai sentado, com o buraco no meio da sua testa expelindo sangue. Na sua boca, ainda há pedaços de roupas e carne. Já Allen, cai de joelhos, soltando a Taurus e levando a destra até o ombro que jorra sangue.

— Merda!! — ele grita tentando segurar o sangue. A dor do ombro agora se mistura com a dor da sua perna.

— Allen? — Millie cai se encostando na parede e começa a chorar, enquanto observa a entrada do beco com uma multidão de canibais, que surgiram atraídos pelos gritos e o som do disparo.

— Ah, não... não, não, não!!! — ele olha para os vários defuntos se aproximando e se levanta, catando sua mochila e arma, ajudando Millie a se levantar logo em seguida.

Os dois saem do beco e cruzam algumas ruas parcialmente iluminadas, até que ele começa a sentir os efeitos da perca de sangue que vai sofrendo e sua visão fica cada vez mais turva. Ele já não sabe mais por onde está andando; tudo o que ele quer é achar um local seguro.

— Droga… por que tem que dar errado agora? — o homem sente o osso da sua perna se mexer e acaba vacilando, não caindo, pois se apoia em um poste.

— Allen, na frente! — Millie aponta e ele vê outra multidão de mortos sedentos por carne humana.

A respiração dele está cada vez mais pesada. O ombro não para de expelir sangue e ele enxerga o olhar de desespero misturado com medo, que está estampado no rosto da criança. Allen olha para os lados, na esperança de achar uma saída dos mortos e vê uma sorveteria com a porta entreaberta.

— Ali! — diz ele, guiando Millie e a levando para a rua, atravessando-a rapidamente.

Eles enfim chegam na sorveteria e Allen empurra a porta, dando passagem para Millie. Quando a menina entra, ele os tranca lá dentro e se afasta, caindo no chão e vendo a fachada do estabelecimento se preencher com vários rostos apodrecidos.

— Temos que parar seu sangramento, Allen. — Millie se aproxima do homem. — Mas eu não sei o que fazer… — suas lágrimas começam a cair.

Allen se encosta em uma pilha de cadeiras e pensa. Ele sabe que irá morrer por causa da mordida, mas não quer esse destino para Millie e já desistiu de tentar parar o sangramento no seu ombro. O inchaço da sua perna também já não o incomoda mais, pois a febre queima o seu corpo, sem dar espaço para outras dores. Após alguns instantes, ele encara a menina e se aproxima, segurando seus ombros.

— Olha, garotinha: essas coisas só morrem se você acertar o cérebro. Não tem outro jeito de matar eles. Você vai ter que fazer isso quando for necessário. E eu sei que você consegue.

— Allen, o que você...

— Eu vou lá fora. Vou distrair eles, levá-los pra longe. E quando tudo estiver limpo, você vai fugir. Procure pela polícia; evite o exército; evite desconhecidos, entendeu?

— Não me deixa sozinha, por favor. — ela o olha e mais lágrimas descem pelas suas bochechas.

— Você me entendeu? — ele encara os olhos verdes da garota.

— Si-sim...

— Você é forte, Millie. Sei que é. Você vai sobreviver. Fique alerta, nunca abaixe sua guarda. — o homem a solta e pega sua mochila, tirando um walkie-talkie e o colocando em seu bolso, tirando outro logo em seguida e o ligando. — Quando tudo estiver limpo, eu lhe aviso pra sair. Até lá, não saia daqui, entendeu? — ele deixa o aparelho no chão e também tira um canivete, o entregando para a garota.

A menina pega os objetos e torna a olhar para o ele, soluçando.

— Allen, não…

Antes que ela falasse mais alguma coisa, Allen a envolve com seu braço direito, a puxando para um abraço. Quieta a menor retribui o afeto.

— Não tenha medo... o medo nos destrói pois nos impede de fazer coisas. Cuidei de você por três anos, Millie... te ensinei o bastante pra você ficar bem. Eu acredito em você.

— Eu não sei o que fazer... — ela funga e aperta o abraço.

— Você tá triste agora, é por isso. Mas vai saber o que fazer quando for necessário.

— Eu te amo, Allen. — suas lágrimas descem pelas bochechas.

— Eu também te amo. Não vou deixar você em perigo com esses mortos aqui fora. Eu vou ficar bem. Vamos sair dessa, tá bem?

A menina não diz nada. Apenas prolonga o abraço o máximo possível.

— Eu tenho que ir. Você sabe o que deve fazer: fique aqui e não saia até eu lhe avisar no rádio. — ele se levanta segurando o ombro de Millie e sorrindo uma última vez antes de se virar para a porta. Quando a menina se afasta o bastante, ele a abre e empurra alguns dos canibais, penetrando na barreira morta.

Já do lado de fora, ele se afasta dos mortos e fica gritando para chamar a atenção deles enquanto manca pela pista.

Millie se aproxima e fica atenta à vidraça, olhando Allen enquanto ele atira uma vez para o alto e grita. Sua estratégia dá certo e os errantes começam a lhe seguir, fervorosos, formando um coral grotesco de grunhidos e rosnados. As criaturas ficam hipnotizadas com os sons feitos pelo único humano ao seu alcance e a fachada da sorveteria começa a ficar limpa.

— Allen... — a menina o observa sumir atrás do aglomerado de canibais.

Conforme o plano se desenrola, parece que Allen será bem-sucedido na sua ideia, mas toda a sua esperança de que Millie saia a salvo é destruída ao som de um motor de um veículo pesado, que fica cada vez mais alto. A horda já saiu quase inteira quando o caminhão com os faróis apagados surge no sentido contrário e Allen tem que se jogar no asfalto, para não ser atropelado. A carreta passa por cima e arremessa dezenas de mortos e logo em seguida, faz uma virada brusca para a esquerda, invadindo a calçada e se chocando de frente com a fachada de uma loja de roupas vizinha à sorveteria onde Millie está, destruindo a fachada da mesma e só parando dentro do estabelecimento. O barulho é estarrecedor, fazendo o vidro da sorveteria trincar em alguns pontos. Millie se afasta da janela e para perto de algumas mesas, assustada pelo barulho. Logo após o acidente, a buzina do caminhão e ativada pelo peso do cadáver do motorista e do seu ajudante, que está o devorando furiosamente. O som atiça os mortos-vivos a quilômetros dali. Todo o plano de Allen foi arruinado.

— Ah, merda... não!! — Allen tenta se levantar, mas está sem forças devido a perca de sangue e os defuntos aproveitam essa oportunidade, se aglomerando ao seu redor.

Sob vários xingamentos, ele tenta se defender, atirando inutilmente nos canibais mais próximos. Porém, sua perna não tem mais forças para se mexer e o pente da Taurus esvazia. Os mortos-vivos se jogam sobre ele e começam a devorá-lo enquanto ele grita. O som da buzina do caminhão toma conta de toda a área, impedindo Millie de ouvir os gritos da única pessoa que realmente lhe ajudou na vida. Ela vai até a janela, gritando ao ver o grupo de mortos abaixados. Chocada e chorando muito, ela se desencosta da vidraça e caminha devagar até parar no balcão sentando-se no chão. Em seguida, ela deita a cabeça nos joelhos, fazendo a única coisa que pode naquele momento: continuar chorando.

Alguns minutos depois, ela não tem mais lágrimas para derramar, mas mantém a mesma posição enquanto um grande grupo de mortos-vivos já se aglomeram nas janelas da sorveteria e ao redor do caminhão batido. O som da buzina também impede que ela ouça a orquestra morta do outro lado do vidro.

Dentro da loja de roupas, uma multidão de errantes esmurra a lataria da cabine do caminhão, até que um deles acaba que, acidentalmente, abrindo a porta do motorista, fazendo com que o peso do corpo do condutor dentro da cabine a abra. O tórax dele sai de cima do volante e o som da buzina finalmente cessa. Os canibais puxam o homem gordo — mas já morto — para fora junto do outro infectado e começam a devorá-lo. O odor de carne ainda fresca parece chamar a atenção de todos os reanimados, que tentam passar por cima uns dos outros, a fim de conseguir um pedaço do cadáver.

Na sorveteria, Millie finalmente ouve os grunhidos dos canibais e limpa as lágrimas do rosto, se levantando. Ela ainda sente uma forte dor no pulso e algumas pelo corpo, devido à batida. A criança encontra algumas mochilas nas cadeiras de uma mesa, mas vai na direção da de Allen e a abre, encontrando uma lanterna e a ligando no brilho baixo, apenas para poder olhar ao redor. Voltando às outras mochilas, tudo o que ela encontra são livros de faculdade e alguns cadernos. Mas em um pequeno bolso lateral de uma delas, Millie acha uma carteira de cigarros da Marlboro ainda pela metade. Depois de observar a carteira, ela a guarda no bolso de trás da calça e se apoia na mesa.

— O que eu faço agora...? — a menina já não tem mais esperanças de nada. Ela olha para os canibais no vidro e depois para o canivete no chão. A vontade chega até ela, mas logo é deixada de lado quando ouve uma voz vinda do walkie-talkie próximo das pilhas de cadeiras, que lhe faz olhar diretamente para o aparelho.

— Aqui é o Detetive Dylan Foster, da polícia de Denverport. Tem alguém na escuta? Repetindo: aqui é o Detetive Dylan Foster, da polícia de Denverport. Tem alguém na escuta?