Chapter 4 - Capítulo II

Os senadores tomaram seus assentos ao ver o rei entrar com sua comitiva. Como já havia se tornado costume, os presentes fizeram um minuto de silêncio em respeito às vítimas. Um número que crescia a cada reunião e tirava cada vez mais o ânimo dos membros do poder de Ravena.

Markus ouviu, com tristeza, os senadores relatarem as notícias de suas províncias. Ultimamente as notícias quase sempre eram as mesmas: pessoas mortas, residências destruídas, comércios sendo fechados, toques de recolher e o medo tomando o coração de todos. Ele já não sabia mais o que era se sentir entediado com as sessões do senado; agora só sabia sentir tristeza, impotência e desolação. Era como se ficasse sentado ali sem poder fazer nada enquanto o mundo desabava ao seu redor.

— Majestade, o grupo de investigação mandado retornou sem respostas. A pista era fria.

Markus olhou para o senador da bancada de Bloodmonger, da província dos vampiros, que era quem fazia o relatório. O vampiro parecia extremamente abatido, como se fizesse meses que não bebesse seu líquido precioso. O rei sabia que aqueles homens rejeitariam sua ideia, assim como rejeitaram várias outras. Ele tentava entender que estavam em um momento difícil e não era hora de improvisações. Só precisava fazê-los enxergar a possibilidade que tinham em mãos.

— Obrigado, senador — disse o rei, com um suspiro. — Senadores, precisamos de uma equipe de resposta, que seja eficiente.

Um burburinho se espalhou entre os senadores.

— Majestade, nenhuma das nossas equipes de resposta teve um retorno efetivo. Só nos deparamos com pistas frias e informações vagas — retorquiu um senador da bancada de Moonwatcher, a província das montanhas.

— Entendo, mas se tentássemos uma composição diferente?

— Composição diferente? — Bufou outro senador, este da província de Whitehart, as florestas do Sul. — Majestade, já fizemos diversas combinações e, pelas ninfas, algumas foram tão desastrosas que ainda abalam meu sono.

Burburinhos de concordância seguiram-se a fala dele.

— Bem, eu estava pensando em mandar pessoas mais descartáveis, como prisioneiros — começou Markus.

— Duvido que qualquer prisioneiro de Lantheon colaborará conosco. Ainda mais que foram nós que os colocamos lá — retrucou outro senador, de Woodenstake, as florestas do Norte.

Lantheon era a prisão de segurança baixa.

— O rei estava pensando em alguém de Silver Coast — disse Jeras, recebendo um olhar inexpressivo do rei.

O silêncio sepulcral caiu sobre o recinto.

— Que... Prisioneiro? — Perguntou o relator da sessão, um senador que também representava Whitehart.

— A quimera — respondeu Jeras.

O burburinho voltou com toda força, dessa vez se tornando vozes enfáticas e raivosas.

— Nunca! — Gritavam uns.

— Aberração! — Xingavam outros.

— Impossível! — Lamentavam-se outros ainda.

Markus suspirou pesadamente vendo aquela cena patética. Os homens que deviam cuidar da nação e zelar pelas criaturas estavam dando chiliques de mulherzinha. Jeras observava a cena com certo prazer, pois ele não queria a quimera livre outra vez. Ele ainda não era Ministro da Segurança e da Guerra na época de sua prisão, mas ouviu as histórias.

— Majestade — disse o relator, com firmeza — você não ter permissão nossa para libertar aquela criatura. Há outras estratégias muito mais efetivas.

— Não estou pedindo a vossa permissão — retorquiu o rei, calmamente. — Estou lhes avisando.

— Avisando? — O senador da bancada de Raven's Gumble, a província dos bruxos, repetiu como se pudesse fazer o rei pensar melhor. — Majestade, devo lhe lembrar que o senhor depende mais do nosso apoio do que nós do seu. Não esqueça que você ainda ocupa este cargo por nossa causa.

Markus fechou a cara. Os senadores emitiram burburinhos de concordância, fazendo o rei irritar-se mais ainda. Esta guerra estúpida já era ruim o suficiente, não precisava lembrar da situação do seu governo.

— Eu não quero aquela garota livre tanto quanto vocês, mas não podemos ignorar a arma eficiente que temos em vão. Só temos que convencê-la a trabalhar a nosso favor.

— Majestade — disse o relator — você se lembra tanto quanto eu, pois já estávamos aqui há cem anos, quando essa garota matou vários dos nossos. Aquela crise já foi suficientemente difícil de contornar, tirar aquela aberração de lá só vai criar mais uma. Não precisamos de mais dor de cabeça. Ouça a razão.

— Desculpe, meus caros, mas são vocês que não estão ouvindo a razão.

— E o que pretende fazer para convencer a garota a trabalhar do nosso lado? — Inquiriu Jeras.

— Prometemos a liberdade total caso ela tenha êxito em trazer a cabeça de Rogath até nós.

— Ora, majestade, e qual garantias teríamos de que ela não nos traísse? — Perguntou o senador de Woodenstake, que parecia estar com náuseas.

— Ela pode ser um monstro, mas tem princípios. Pode ser perigosa, mas é uma marionete fácil de manipular — o rei sorriu, coçando o queixo de forma pensativa. — Eu prometo que vou lhe dar a liberdade, talvez algumas regalias inocentes, e quando ela trouxer meu prêmio, jogo-a na cadeia novamente. Confie em mim, ela vai dançar conforme nossa música.

Os senadores entreolharam-se, desconfiados.

— Majestade, essa é uma ideia muito ousada — disse o relator.

— Ora vamos! — Exclamou o rei, impaciente. — Quantas vezes teremos uma chance dessa? Ela está totalmente vulnerável a nós. Pense em quanto dinheiro economizaremos, quantos soldados serão poupados. E se não der certo, colocaremos a culpa nela e ela virará procurada outra vez. No entanto, agora sabemos quais são suas fraquezas.

Muitos continuavam com a mesma expressão de desprezo pela ideia, mas, por coincidência do destino, os que exibiam expressões de aprovação eram os que tinham mais poder de voto. Jeras franziu a testa, preocupado com os planos do rei. Sim, deixar a garota livre era perigoso, mas o ministro tinha quase certeza de que trair a confiança dela era mil vezes pior.

— Majestade — disse o relator — daremos a sua chance. Faça a garota colaborar e garanta que ela agirá conforme nossas vontades.

Markus sorriu, satisfeito. Seus planos estavam seguindo o caminho correto. A guerra daria uma reviravolta favorável e ele teria seus dois prêmios.

As cabeças de Rogath e Atalya, penduradas na parede.

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Quando a porta da minha cela foi abalada pelos socos do guarda, eu já sabia o que era. Markus estava de volta. Eu sabia que ele voltaria.

— Levante-se. Você tem visitas — esbravejou o Sr. Olhinhos de Porco.

Estranhamente, a prisão estava silenciosa hoje. Alguns gemidos ainda eram ouvidos, mas pareciam lamentos distantes, quase que em outro lugar. Era como se esperassem por algo que estava prestes a acontecer. Aquilo me deu um arrepio desagradável.

Os guardas chegaram mais rápido dessa vez e me prepararam de forma mais apressada e brusca, tanto que um dos guardas pegou no meu braço e praticamente me arrastou. Nem a formação deles estava organizada.

— Você anda requisitada, não é? — Perguntou uma guarda.

Foi a única frase que disseram no caminho. Ao chegar na salinha, eles tiraram minha mordaça antes mesmo de eu entrar e me empurraram para dentro, fechando a porta em seguida. Pareciam que iam tirar o pai da forca.

Markus estava pacientemente sentado, me aguardando. Os guardas ergueram suas armas ao me ver.

— Olá, Atalya — saudou o rei.

A vontade de esganá-lo invadiu meu íntimo. Fechei os punhos, tentando me conter.

— Oi — grunhi.

— Pensou na minha proposta?

— A resposta é não, Markus. E eu já havia dito isso a você. É uma resposta definitiva. Está ficando senil? Ou o feitiço de desistência da velhice afetou seu cérebro?

O rei riu, como se ele se lembrasse de uma piada antiga.

— Realmente, minha proposta foi precipitada e ingênua. Eu melhorei ela e acredito que agora você vai gostar.

Desconfiada, avancei com cuidado até a cadeira defronte ao rei e me sentei lentamente, nunca desviando o olhar do rosto do rei. O que ele queria comigo?

— Eu ainda quero sua ajuda para derrotar Rogath. Só que dessa vez, o prêmio é a liberdade.

Ele deixou a palavra pairar ali por um momento. Mantive uma expressão vazia, mas meu coração deu um pequeno salto.

— Eu devia imaginar que alguém como você, que está aqui há muito tempo, não ia querer experimentar a liberdade para depois voltar a ficar presa. Foi ingênuo da minha parte. Embora seus crimes tenham sido graves, não acredito que você queira repeti-los.

Ele me olhou intensamente e eu estreitei os olhos. Lembranças, como feridas abertas, arderam dentro de mim. Dias de terror, de agonia, de dor. Dias que eu não queria repetir.

— Não quero — murmurei, relutante.

— A liberdade é uma dádiva, Atalya, e eu sei o quanto você a deseja — a voz do rei era suave. — Você pode tê-la de volta, se concordar em fazer esse pequeno serviço para mim.

Umedeci meus lábios, mas não respondi nada.

— Seus dons nunca passaram despercebidos por nós, mesmo quando você era uma ameaça. Rogath não seria páreo para alguém como você.

— Porque Rogath está em guerra contra você? — perguntei, desconfiada.

— Ele quer estabelecer uma ditadura de terror e morte.

— Ele defende a causa híbrida?

— Não, ele quer apenas o poder. Puristas e híbridos estão morrendo em suas mãos.

Assenti, entendendo. Eu lutava pela causa híbrida até ser capturada. Nunca desejei o poder, só queria justiça. Se Rogath pensasse como eu, Markus estaria sendo burro em achar que eu concordaria em matar meus próprios princípios, mas alguém que queria apenas o poder e matava qualquer um tinha de ser parado. Ele não lutava por um ideal ou por alguém, lutava por si próprio. E isso era uma luta vazia.

— E se eu aceitar? — Perguntei.

— Seria como uma liberdade condicional. Você sairia, acharia Rogath e o traria para mim, vivo ou morto. Prefiro morto. E então, sua ficha seria queimada, todos os seus crimes esquecidos, a liberdade dada a você de bandeja.

A missão parecia fácil, de certa forma. Certamente Rogath deveria ter tropas e vivia em uma fortaleza escondida, mas com uma invasão bem planejada isto poderia ser facilmente contornado. Entrar sorrateiramente, matar Rogath, sair viva, apreciar minha liberdade.

Há cem anos, eu jamais mancharia meu orgulho concordando em trabalhar com o rei. Eu era uma guerreira lutando por uma causa nobre, não uma mercenária desesperada. Só que cem anos não são cem dias, e algumas coisas tendem a mudar nesse meio tempo, juntamente com a experiência de estar presa pelo que parecia ser o resto da existência. Não sobrava mais espaço para o orgulho ou para questões fúteis.

— Se eu concordar — falei devagar — não quero ser imputada por novos crimes enquanto estiver nessa missão — ao ver a expressão desconfiada de Markus, rapidamente expliquei: — eu vou matar muitas pessoas para chegar até ele, isso sem falar em invasão de propriedade privada, falsidade ideológica e agressão.

Markus considerou por um momento.

— Justo — foi apenas o que disse.

— Vou ter minha espada de volta?

— Sim. Esses detalhes sórdidos poderemos tratar no castelo.

Assenti, refletindo. Eu iria aceitar? Iria dar o braço a torcer e trabalhar com meu inimigo? Iria ignorar e ocultar tudo de ruim que me aconteceu?

Sim, eu ia.

Cada célula minha sabia que eu jamais teria outra chance como essa. A liberdade estava tão perto de mim que eu quase conseguia tocá-la, como se fosse tangível. Era minha oportunidade de sentir o ar fresco novamente, de ver outras pessoas, de nunca mais ouvir os sons angustiantes dos presos, de não ter que aguentar a grosseria dos guardas e toda a situação decadente daqui. Todo o meu passado seria apagado e eu construiria um futuro diferente para mim.

Eu cumpriria a missão, conquistaria minha liberdade e nunca mais me meteria em problemas. Iria para um lugar bem longe e passaria o resto da existência no meu canto, tranquila. Teria uma casa só minha, a única preocupação seria manter tudo organizado e ter comida na mesa. Talvez eu pudesse trabalhar.

— E então, Atalya? — Markus interrompeu minhas divagações, me trazendo para o momento atual. — O que diz sobre a minha proposta?

— Markus, meu caro — dei um sorriso malicioso. — Você me pegou de bom humor, eu aceitarei sua proposta.

Markus parecia uma criança na manhã de Natal.

— Vamos providenciar sua saída o quanto antes — disse ele, animado.

Os guardas apareceram rapidamente e me acompanharam de volta a minha cela, todos em silêncio. Eu sabia que eles estavam contrariados, era muito mais emocionante quando o detento recebia pena de morte. Não foi dessa vez, pessoal.

Naquela noite, eu não dormi. Não era por causa da agitação da prisão ou porque um dos detentos tentou fugir. Era porque logo, logo eu iria sair dali. Sem mais da mesma rotina. Sem mais guardas, sem mais humilhação, sem mais vontade de morrer. Vida nova.

A ordem de soltura chegou na manhã seguinte. Os guardas entraram na minha cela e anunciaram que eu estava livre e que só precisava passar por alguns procedimentos. Achei um pouco gentil que eles trouxeram uma muda de roupa, nada muito elaborado, mas era bem melhor que desfilar por aí nas roupas da cadeia. Ou pelada.

— Siga-me — ordenou a guarda mulher assim que me entregou a roupa.

Segui-a até um cômodo todo revestido de azulejos, com ralos no chão cheios de limo e sem janelas nenhuma.

— Tire a roupa — mandou ela.

— O que vai fazer comigo? — Perguntei, desconfiada.

Ela deu uma risadinha.

— Você é bonitinha, mas não faz meu tipo. Vou te dar um banho de desinfecção.

O "banho de desinfecção" era um banho de mangueira, com a água tão fria que parecia vir direto de uma geleira. Havia algo misturado a ela, porque deixou minha pele em carne viva e com um forte cheiro de ervas. Aquela água foi espalhada por todo o meu corpo e parecia derreter meu couro cabeludo, mas não exprimi nenhum indício de dor. Logo eu sairia dali e não teria que passar por isso nunca mais. Me sequei, sentindo-me extremamente constrangida sob o olhar desinteressado da guarda. Vesti as roupas novas e a acompanhei novamente.

Perdi as contas de quantos papeis eu assinei. O diretor da prisão, um sujeito calvo e franzino parecia tão contrariado quanto os guardas. Não era todo dia que um prisioneiro de Silver Coast era libertado. E a mando do rei.

— Está livre, quimera — disse o diretor.

As palavras soaram como música para mim.

Liberdade. Ainda que tardia.