Chapter 4 - A fronteira

Joguei a faca enferrujada no chão, ela não seria mais útil em lutas ou qualquer outra coisa, pois seu nível de desgaste está muito elevado. Revirando os bolsos de Maria, encontrei um pequeno estojo de ferro e um papel amassado.

Abrindo o estojo, fiquei surpreso ao encontrar várias agulhas uma ao lado da outra, elas estavam excessivamente polidas e pareciam ser de um material incomum, pois a ponta das agulhas tinha um brilho verde extremamente belo, mas também perigoso.

Fechei o estojo e antes de sair do quarto me aproximo do corpo de Maria, de forma cautelosa, a coloco de lado e retiro um pequeno objeto circular localizado em sua espinha, ele brilhava em um profundo tom de verde, sendo composto por pequenos filamentos verdes pulsantes, todas as fibras iam se aglomerando no centro.

"Esse deve ser o núcleo dela"

Após completar a primeira parte do acordo eu precisava organizar meus pensamentos. O primeiro problema a lidar foi sobre as características dos infectados, também preciso de equipamentos, suprimentos e várias outras coisas. Ponderei por bastante tempo e decidi sair ao pensar em algo.

Fechando a porta eu senti que estava esquecendo de algo, mas independente do quanto penso no que poderia ser não consigo me lembrar. Decidi ignorar isso por enquanto e focar mais nas minhas necessidades, precisava agora de algumas roupas e equipamentos.

Revirando a casa consegui encontrar roupas até decentes em alguns dos cadáveres no local, um pouco de água barrenta da torneira também ajudou muito a dar uma aparência melhor nas manchas de sangue. No fim, não consegui encontrar comida nem água potável, mas roupas em um estado até decente e duas adagas bastante afiadas estavam agora a disposição.

Encontrei também uma mochila preta militar em ótimo estado quando retirei alguns corpos da pilha, minha sorte foi realmente boa. Acabei gastando muito tempo fazendo procurando e novamente estava anoitecendo, essa não pode ser a melhor hora para sair para pessoas normais, pois os infectados possuem uma ótima visão no escuro.

Depois de retirar tudo o que poderia ser útil da casa peguei o núcleo de Maria e o segurei em minha mão. Comparado a antes ele estava um pouco mais escuro, e sua energia se esvaindo gradualmente, então sem demora o engoli.

Uma onda de prazer intoxicante subiu em direção ao meu cérebro de forma rápida e voraz, durante alguns segundos me senti como se estivesse nos céus e comecei a alucinar, tentando voltar a sanidade rapidamente bati forte com minha cabeça na parede, a medida foi eficaz até demais, pois minha consciência começou a abrandar.

Algum tempo após, minha psique se estabilizou e consegui voltar ao normal. Notei como a situação foi perigosa irei tomar muito mais cuidado ao ingerir núcleos no futuro, a concentração energética é extremamente potente e eu me senti sobrecarregado com tanta energia.

Tento notar qualquer diferença aparente em meu corpo, mas supostamente nenhuma mudança brusca aconteceu. Ficar pensando muito nesse assunto não vai ajudar em nada por enquanto, já que não possuo pistas além de um sentimento diferente no fundo da minha mente a qual cresce em intensidade.

O que eu poderia extrair de recursos dentro dessa casa eu já retirei, no final além de algumas outras roupas em bom estado e as adagas minha mochila está vazia, mas tudo tem um certo começo.

Antes de sair da casa, precisava fazer algo que me incomoda a um tempo. Descobri que ainda existiam materiais inflamáveis na casa, vários, na verdade, mas como cada um deles eram poucos em conteúdo eu decidi não os levar. Juntei todos em um certo local, me aproveitei do resto de gás que ainda tinha dentro do botijão na cozinha, criei um pequeno mecanismo bem criativo e saí em direção as ruas.

Foi a primeira vez apreciando o luar novamente, com a falta de luzes artificiais na cidade as estrelas estavam mais visíveis que nunca, não demorei muito tempo observando, pois, ficar ali durante muito tempo seria problemático.

Comecei a andar em direção ao norte, tirando do meu bolso um pequeno papel amassado e com várias manchas de sangue consegui ter uma ideia básica da cidade. Maria me disse que estava vindo aqui em busca de sua irmã, elas tinham sido separadas no começo da calamidade e só agora, um ano após Maria tinha conseguido descobrir o paradeiro dela.

A sua irmã estava agora na 13.ª área, como Maria tinha me dito, a 13.ª é considerada a menos segura e enfrenta vários problemas. Segundo o mapa, estou entre a periferia da área 13, quase em suas fronteiras, mas ainda tenho um longo caminho até chegar realmente no abrigo principal.

Ao continuar andando, escutei um barulho que veio da minha direção contrária, o mecanismo deve ter funcionado, os materiais inflamáveis devem estar queimando e a casa em chamas. Eu precisava queimar o corpo de Maria, pois não tenho tempo para um sepultamento, mas não queria deixar seu corpo desprovido de vida ao ar livre. Subindo a rua eu vi pela primeira vez um infectado.

Ele parecia não me notar ainda, os infectados devem ter um campo de visão no escuro com cerca de cinquenta metros ou algo assim, então do angulo onde estou ele possivelmente não me enxergará.

Claro, supondo que eles tenham o mesmo campo de visão que o meu, já que também sou um infectado estou me usando como base para entender um pouco mais sobre eles. Maria me deu muitas informações preciosas, mas ainda assim prefiro testar suas hipóteses com o tempo, ao invés de acreditar nela cegamente.

Com cautela fui me aproximando do infectado, ele parece estar sozinho nesse lado e descansando. Segundo Maria, os infectados também precisam se alimentar e descansar, mas graças o vírus eles só precisam descansar durante quatro horas por dia e seus corpos vão estar completamente cheios de energia. Ao chegar a cerca de 20 metros da criatura finalmente entrei em seus sentidos, pois ela subitamente se ergueu e olhou em minha direção. Isso não fazia sentido, com certeza eu não estava ainda em seu campo de visão, muito menos fiz qualquer barulho aparente.

Minha mente criou mais e mais hipóteses a cada segundo sobre o que poderia ter acontecido, mas fui interrompido pela atitude do infectado. O infectado novamente se sentou e voltou a descansar, até mesmo seus olhos estavam fechados e não me observava mais, baixando totalmente sua guarda.

"É como pensei, eles devem me tratar como um deles já que também estou infectado"

Ainda tinha minhas dúvidas, então fui me aproximando pouco a pouco da criatura, ao chegar mais próximo ela novamente se coloca com a guarda alta, mas não tenta me atacar de forma alguma.

Continuo seguindo, mesmo sem olhar para trás sei que ela voltou a descansar.

"Sou realmente tão diferente assim deles?"

Foi a pergunta que ficou em minha mente durante todo aquele trajeto em direção ao norte.

Finalmente consegui ver a presença de casas menos destruídas, antes os sinais de destruição eram tão fortes que não tinha muitos motivos para dar uma segunda olhada por onde passei, só procurava a presença de algo que poderia me trazer perigo e ignorava o resto. Andei bastante, procurei principalmente a presença humana em algum local, mas nada encontrei.

O chão irregular da cidade quase me fez cair algumas vezes. Crateras com cerca de três metros de profundidade estão espalhadas o que deixa ainda mais difícil de se locomover, então acabei demorando mais tempo do que imaginava.

Fiz uma pequena pausa, tentando me localizar melhor, segurei o mapa em e comecei a analisar melhor toda a cidade. Não consegui me concentrar muito bem, pois existiam alguns infectados dentro das crateras se escondendo, mas não deram nem um segundo olhar ao me ver passar por eles.

Já estava por volta das duas da manhã quando finalmente sai da periferia da cidade e consegui chegar em suas fronteiras. São bem diferente do que imaginava, pois, não pensei em tão ríspido e bruto ser a "fronteira". Uma grande cerca de ferro com mais de quatro metros de altura, com vários espinhos metálicos retorcidos e bastante entulho tranca todas as ruas a partir dessa área na cidade. Casas abarrotadas de entulho para dificultar a passagem também eram comuns, obviamente foi feito às pressas, mas tinha seu grau de eficiência.

Com bastante dificuldade logo após amanhecer consegui achar uma abertura em uma das casas e finalmente entrei. Desviar dos espinhos metálicos exigiu bastante da minha flexibilidade, todavia consegui entrar sem muitos problemas.

Nessa hora do dia, o sol já estava brilhando. Olhei para o relógio quebrado a qual trouxe comigo junto da casa e marcavam 10:00.

"Faz muito tempo que estou andando, preciso descansar..."

Preciso achar um local para descansar, mas prefiro que o local não esteja abarrotado de infectados em todos os locais, então continuei andando para entrar em uma área mais desértica.

Novamente vários infectados continuavam passando nas ruas, mas algo de diferente existia neles. Um infectado normal tem a aparência como um humano, a maior diferença seria sua magreza extrema, acompanhadas de feridas superficiais e os símbolos em seus corpos.

Os infectados dentro da área 13 são diferentes em sua aparência, pois os que eu vi desse lado da fronteira tem músculos bem desenvolvidos e em casos bastante raros encontrei algo semelhante ha tatuagens de sangue em seus corpos. Ao andar ou fazer algo o símbolo no corpo das criaturas se movia, quase como se estivesse vivo.

"Esses devem ser os infectados de nível 1."

Maria tinha me explicado que quanto maior o nível dos infectados, mais mudanças qualitativas acontecem em suas forças e racionalidade. A rua totalmente lotada dessas criaturas me causa desconforto, com certeza essa é uma área de risco para humanos, mas eu simplesmente continuei andando em frente.

Observei melhor meu entorno e consegui encontrar um túnel bastante desgastado e destruído em alguns locais, ele provavelmente leva para o outro lado da cidade considerando o mapa antigo da cidade, então decidi usar ele como um possível atalho.

Foi complexo me movimentar pela cidade e o mapa foi feito antes da grande calamidade, o que dificulta ainda mais a situação. O túnel tem uma umidade irritante dentro dele, os infectados estão mais concentrados e a maioria já evoluiu para o nível 1.

Quando cheguei ao local onde as criaturas estão excessivamente concentradas, algo aconteceu. Uma onda de dor veio do fundo de minha mente e senti estar destruindo minha psique, fiquei paralisado durante alguns segundos sem saber o que fazer, todavia algo mais bizarro ainda aconteceu quando tentei continuar andando a frente. Consegui escutar uma pequena voz sussurrando algo em meus ouvidos.

A voz aumentava em intensidade, mas eu já não estava disposto a ouvir mais nada, pois comecei a voltar de onde vim correndo o mais rápido que pude. Recuperando o folego fora do túnel eu desisti totalmente da ideia de pegar um atalho pelo túnel.

Novamente observando o mapa, procurei bairro comercial perto de onde estou e realmente consegui encontrar um bairro não muito distante dali com a presença de alguns centros comerciais.

Alguns minutos recuperando o folego foram o suficiente para conseguir me erguer novamente e ir em direção a área comercial. Considerando ser uma área com suprimentos e já ter passado um ano da calamidade, as pessoas devem ter ido em direção ao abrigo na época de sua formação e deixado algumas coisas grandes, mas que poderiam ser úteis agora.

Chegando cada vez mais próximo ao bairro comercial, notei o quanto a rua agora estava cada vez com menos infectados. Lojas estavam começando a aparecer no meu campo de visão, a maioria delas tinham pequenas barricadas em suas portas, ou algo como pedaços de madeira e entulho travava a passagem.

Procurei durante um bom tempo, mas decidi abandonar a ideia de explorar as pequenas lojas e fui em direção a um mercado de porte médio no fim da rua. Comecei a sentir algo de errado com a situação, meus instintos estavam me dizendo que algo errado estava acontecendo aqui.

Comecei a andar lentamente, tentei ao máximo não fazer barulho algum e cheguei mais próximo ao mercado. Fiquei próximo à porta, escondido em uma pilha de entulho que servia para travar a entrada do local. Dentro dele comecei a escutar algumas vozes, as pessoas estão animadas, animadas até demais.

— Marco, você é incrível! Cara, como conseguiu encontrar tanta comida?

A primeira voz não continha sua animação ao falar.

— Não precisa ficar tão surpreso, foram graças as minhas habilidades que não passamos fome até agora.

Pelo pouco que escutei, o suposto Marco parece ser bem confiante.

— Calem-se, idiotas! Devido a alguma comida já esqueceram do nosso problema?

Os dois homens se calaram ao escutar essa voz e um silêncio tortuoso se instalou no local durante algum tempo, a voz novamente quebra o silêncio.

— Desculpa garotos. Estou muito ansiosa para a seleção na próxima semana.

Com um tom de arrependimento, a mulher aparentava estar arrependida de destruir o clima anterior.

— Não se preocupe tanto Hanna, nós vamos conseguir dessa vez.

— Obrigada pelo apoio Marco, desde que o Max foi embora teria sido muito difícil para só eu e o Wallace sobrevivermos aqui...

— Somos companheiros, Hanna, então devemos fazer o máximo para sobreviver juntos!

A conversa tinha terminado por ali, logo após toda essa comoção cada um se direcionou a um ponto do mercado. Enquanto estava escutando suas vozes diminuindo em intensidade percebi algo. Minha audição, com certeza ela foi evoluída. Sem contar o fato de estar a mais de dez metros das paredes do mercado, no mínimo eles estão ainda mais profundamente lá dentro, pois consigo escutar até mesmo alguns sussurros vindos de dentro.

Foi um desses sussurros que me impediu de ir embora quando toda a conversa acabou, o sussurro veio de Hanna.

— Iremos hoje à noite, Wallace.

— Me avise quando ele dormir, vamos ser rápidos.

Avistei ao lado do mercado uma pequena barraca já abandonada, tinha alguns rasgos, mas se eu conseguir cobrir eles com algum tecido ela ficaria utilizável. Com o sol nessa hora da manhã com certeza ficarei com calor, mas não quero me distanciar demais do mercado nem ficar muito visível a possíveis sobreviventes nas redondezas.

Existem muitos fatores estranhos aqui, o primeiro é o porquê de ainda existirem sobreviventes aqui, nessa área desolada. Eu já deveria estar vendo o abrigo central da área 13 também, mas até agora não consegui encontrar nada. Essa pequena equipe foi a única que consegui encontrar nesse bairro, então só poderei pedir alguma informação a eles por enquanto.

Nada me impede de sair desse bairro e ir em direção a alguma área residencial, então vou decidir o que fazer amanhã. Por enquanto, irei descansar.

Ao me encostar no concreto áspero, notei um pequeno traço de luz a qual saia de um buraco na tenda e caia diretamente em um fragmento de espelho. Quando o coloquei em minha mão, não tinha mais do que vinte centímetros de diâmetro, mas servia. Coloquei o angulo do espelho em direção da minha testa, todavia não consegui notar nenhum símbolo. Não tentei observar meu rosto na cidade, pois não encontrei espelhos ou objetos que refletiam minha imagem em um estado razoável. A falta de tempo enquanto estava andando pela cidade não auxiliou muito, procurando esses detalhes também.

Agora eu estava em um dilema, ou Maria mentiu sobre o símbolo, ou ele desapareceu.

Em qualquer uma das duas situações, eu estou com problemas.