Os trovões. Ah! Os trovões! São avisos dos céus aos terrenos. Os prelúdios da grande tempestade. Dos dias das águas e da grande escuridão. Mensageiros do tempo que há de vir. O tempo daqueles que não têm corpos e guardam ódio pelos vivos. O tempo da guerra e do choro. Do sangue e do lamento. E dos trovões, que soarão ainda, cantando suas músicas sobre O Tempo do Fim.
*Hjalmar Tr'ndu – O Tempo do Fim
*
Antes mesmo que possa abrir seus olhos, Arthur sente que seu corpo despenca. Como uma gota d'água, ele se percebe cruzando o céu noturo de modo vertical. Em alta velocidade, em meio à chuva e à escuridão. Sua mente, confusa, não é capaz de sentir nada além de desespero e sua garganta engasga num grito mudo. Seu corpo cai em um recipiente de madeira, cortando o céu tempestuoso, em meio ao barulho ensurdecedor da chuva pesada que cai em seu redor. Ele despenca, agarrado em sua canoa, descendo pelo infinito de azul e preto.
Não há tempo para pensar no "como" ou ��por quê". Há apenas a garganta fechada, incapaz de berrar o desespero que o preenche. O medo paralisa e um novo choque o atinge: A canoa, junto com o corpo, mergulha em águas escuras de um mar desconhecido. A submersão dura apenas alguns segundos, mas, aos olhos arregalados de Arthur, parecem durar uma eternidade. Seus ouvidos são tomados por um silêncio retumbante, oposto à barulheira chuvosa de antes. Água invade seu nariz e entra por sua boca, tapando ainda mais a garganta. Por um momento, ele pensa que vai afogar e só é capaz de sacudir o corpo desesperadamente, lutando contra as amarras d'água que preenchem suas entranhas e cercam seu corpo por todos os lados.
O desespero cega e interrompe qualquer raciocínio lógico. A embarcação emerge das águas, agora flutuando sobre as ondas do mar revolto. Gotas de chuva machucam sua pele como batidas de pregos, uma após a outra. Uma vez acima das águas, ele puxa o ar de modo desesperado – o peito move rápido, guiando o ar para a garganta, numa respiração sonora e profunda. Arfando, ele arrisca erguer o rosto pela primeira vez. Ainda sem energia para gritar, escuta um som gutural de tempestade. Olha em volta e tudo o que vê é água por todos os lados, ondas fortes e um vazio desolador. Ao longe, por vezes, os raios iluminam silhuetas colossais, de figuras que ele não pode distinguir.
Frio e medo.
Por alguma razão, não há dor misturada aos sentimentos. Apenas frio e um medo profundo, instintivo e selvagem. Usando a pouca força que seus braços magros proporcionam, ele se mantém sobre a canoa, com esperança de enxergar algo além das silhuetas que se escondem no horizonte.
A pequena embarcação resiste, onda após onda, empurrada pela água e pelo vento em todas as direções. Vaga sem parar, mas não revela um refúgio, por mais que os olhos procurem terra firme em todas as direções.
A chuva ressoa ainda mais alta que antes. Relâmpagos reinam sobre a escuridão e trovões rebombam sobre o silêncio. Um após o outro, com sons de mil tambores e luzes de milhares de lâmpadas. Revelam, para todos os lados, sombras ainda mais assustadoras do que a escuridão solitária.
O som dos mil tambores ensurdece os ouvidos jovens, chegando ao ápice de uma canção de morte. É o bastante para esvaziar os ânimos e mortificar o rapaz que está sobre a canoa. Impotente, ele se encolhe na embarcação, esse abrigo inesperado e desconhecido até pouco tempo.
Então, reina o silêncio. Apenas por um segundo. Tão ensurdecedor quanto o barulho de antes. Uma pausa, permitindo às ondas que reclamem sua majestade por todos os lados. Apenas um segundo antes do retorno da luz. Antes que os relâmpagos cruzem o horizonte por todas as direções. E antes que um som gutural estremeça o âmago de Arthur, ressoando às costas do garoto. O medo cresce de tal maneira que seu corpo responde de modo automático, colocando-o em pé para tentar enxergar o que teria emitido tal som.
Atrás de sua canoa, onde as ondas se movimentam, emerge um torso côncavo e couraçado, dezena de vezes mais comprido do que a canoa. Ele se ergue devagar sobre as águas, soando uma sirene grave, ecoando em meio à tempestade.
Arthur cambaleia e sente que suas pernas cedem ao temor, caindo de costas e de olhos arregalados. Aquele torso se ergue mais e mais, por metros acima de sua cabeça. Um corpo negro e reluzente, muito mais alto que muitos prédios. Acompanhando a imagem à sua frente, ele olha para os lados e não é capaz de distinguir o início ou fim da criatura. Outra vez ela emite seu som – uma sirene ensurdecedora, que se impõe sobre o barulho da tempestade. O som ondula, numa mistura de grave e médio, dissipando após atingir seu ponto mais alto.
Um movimento de lado permite que surja uma enorme barbatana por entre as águas. Metros e mais metros do membro couraçado sobem e, sem demora, descem em um golpe frontal contra a superfície do mar. Arthur não tem tempo de pensar em uma solução, pois o problema se joga para cima dele antes que possa pensar em algo: As ��guas levantadas pelo golpe da barbatana erguem uma onda mais alta que todas as anteriores, arremessando a canoa, que se desprende das águas em alta velocidade. Ele não tem tempo de pensar em se segurar e é jogado para fora, balançando os braços em vão.
No ar, ele tem tempo apenas para entender que não conseguirá retornar ao pequeno barco. Então é abraçado pelas águas.
-Socorro! - Ele grita, com o rosto ainda na superfície. - Eu não sei nadar! SOCORRO!
A tempestade responde com o som de mil trovões. O corpo afunda e ele vê partes de seu pequeno barco destroçado nas proximidades uma última vez antes de segurar a respiração e sentir o corpo afundar n'água.
De olhos abertos, percebe que as águas são menos escuras do que esperava. Segurando o ar, ele move os braços de modo descoordenado, fazendo que seu corpo se mova, mas não para cima. Quanto mais ele se movimenta, mais parece afundar. E quanto mais tenta, mais falha em ir na direção que deseja.
"Então é isso?" Ele se pergunta, olhando em redor. "É assim que eu vou morrer? Agora, que pensei que minha vida mudaria?" Em seu peito, a raiva cresce. "Sem saber onde estou? Sem nem mesmo entender o que está acontecendo?"
Adiante, é possível ver a criatura que emergiu há pouco. É uma baleia. Muito maior que qualquer espécie que ele Arthur soubesse ter existido na Terra. Aquilo na sua frente é um monstro de proporções colossais. Que percebe o corpo que se debate inutilmente e decide ir naquela direção. O futuro é óbvio e o rapaz o pressente. Sente ainda mais raiva por isso. Sente ódio.
"O que eu fiz para estar aqui? Qual o motivo para essa morte? Me responda!"
Não há o que fazer. A criatura abre a boca e se movimenta. Sobrecarregado pelos sentimentos recentes, o pavor se amontoa sobre os demais, congelando suas entranhas. E, ainda assim, a sua expressão é de raiva – não medo, nem lamento. Raiva sincera contra as circunstâncias que o colocaram naquela posição.
A criatura está há alguns metros. Não há razão para segurar a respiração agora. Ele abre a boca, berrando as poucas bolhas de ar que o oxigênio em seus pulmões é capaz de produzir; água entra pela garganta, queimando o caminho adentro. Ele amaldiçoa a baleia, os mares e esse mundo ingrato que surgiu apenas para trazer a sua morte.
A boca da criatura cresce e ele é capaz de enxergar o seu interior. Sua reação é fechar os olhos e sacudir o corpo uma última vez, sentindo a falta de ar apagar a consciência.
Então, algo atinge a lateral da baleia. Uma criatura menor, poucas vezes maior que o próprio garoto, ataca o animal gigante com uma mordida poderosa, rasgando sua couraça e arrancando um toque de sirene afogado pela água. Sangue negro escoa por todos os lados. Surge outra criatura e então outra. Predadores que perturbam o movimento das águas e ignoram as presas fáceis e pequenas. Que não veem o corpo desfalecido que é jogado para longe com aquela movimentação violenta.
Assim, um homem desacordado se ergue devagar e boia na superfície do oceano tempestuoso.
*
Arthur sente que sua língua tem um gosto diferente. Contra o céu da boca, ela parece revelar uma textura arenosa. Por isso, quando ele recobra os sentidos, a primeira constatação que faz é a de que, em algum momento, um pouco de areia entrou ali.
Ao despertar, por alguns instantes ele esquece os acontecimentos da noite anterior. Sua mente entorpecida o convence de que tudo não passou de um pesadelo. E, antes de abrir os olhos, ainda que não tenha uma explicação para a areia em sua boca, ele faz um desejo: Que possa despertar em seu quarto. Tudo o que quer é abrir os olhos e começar o dia em que sua vida mudará para melhor. Para o início daquilo que sempre desejou.
Se isso acontecer, ele também poderá ver sua família mais uma vez. Abraçar seu irmão. Ver o sorriso de seus pais.
Basta criar coragem e abrir os olhos.
Vamos lá.
Um, dois, três.
Os olhos abrem e o sol os fere de imediato, revelando contornos de uma praia deserta.
Arthur sente todo o corpo coberto por areia molhada. Todos os seus membros estão dormentes e doloridos. A água produz sons ao fundo e a maré lhe toca os calcanhares.
"Onde estou?" Ele tenta perguntar em voz alta, porém, não encontra a própria voz. Rouco, ele tosse e balança o corpo, incapaz de fazer qualquer movimento complexo. Com dor em todos os membros, percebe dificuldade até mesmo em sua respiração, com as entranhas contorcendo a cada movimento do peito. Ao tossir, água e sujeira saltam de seus lábios e escorrem pelas bochechas. O tronco é tomado por um movimento compulsivo e parte daquilo que lhe impede a fala acaba por sair pela boca.
Os olhos se recuperam e a dor dá espaço ao cansaço. Ele olha o céu acima de sua cabeça e se pergunta se esse é o mesmo lugar em que despertou no dia anterior. A mente nublada recupera as memórias da tempestade e o corpo se arrepia com as lembranças. Pouco a pouco, ele relembra a queda, as ondas e a tempestade. Sente o medo pelo virar da canoa e o pavor com o surgimento da baleia. Não consegue entender porque não foi devorado, porém, não é capaz de se prender demais a essa informação. Inclinando a cabeça para os lados – único movimento que não lhe causa dores lancinantes – ele se pregunta se está livre da morte. Ao se perguntar a razão para passar por toda essa situação, não consegue impedir que o peito se encha de tristeza e ressentimento. O que está acontecendo? Por que está acontecendo?
Nada disso é justo.
Acima de sua cabeça, o céu é azul, claro e pacífico. A luz do dia provém de um sol amarelo, similar àquele que sempre nasceu durante toda a sua vida. Os olhos finalmente se recuperam do choque causado pelo contraste entre a luz diurna em relação à negrura da noite anterior.
Sem poder mexer nem gritar por socorro, ele se percebe sem escolha a não ser contemplar o céu, tomado por um cansaço paralisante enquanto pensa nos perigos da noite anterior.
Seus olhos estão perdidos na contemplação das nuvens, quando percebem uma luz estranha no seu campo de visão. Não é a luz do sol no céu. É uma luz diferente. Ela é viva e se move – primeiro para lá, depois para cá. Devagar no início, depois com mais vontade, como se quisesse chamar a atenção. Ela dança diante dos olhos dele, ganhando forma conforme o tempo passa. Após alguns segundos, já não é somente energia. É uma massa. Leve como gás, porém, densa e colorida também. Uma cor diferente de todas as outras que Arthur já viu em sua vida. Não é opaca, mas de uma transparência similar à do plástico, dando a impressão de que o gás está se transformando em plasma.
A luz ganha forma e continua a se mover. Ela vai para a esquerda e então para a direita. Sabe que é vista e parece consolidar seu formato por causa disso. Aproxima-se do corpo dele. Paralisado – agora não somente por uma incapacidade física, mas também por esse novo choque –, ele sente, em seu interior, algo frio. Puramente gélido. Então, sente-se repentinamente aquecido. Frio e quente se misturam e parecem mover junto com a forma à sua frente. E ele sente alegria e tristeza. Dor e prazer. O universo parece caber dentro de suas entranhas e tudo parece possível, ao mesmo tempo em que tudo parece impossível. Então, já não há espaço para nada dentro de seu peito. Já não pode mais nada. Apenas encarar, estarrecido, a imagem diante de seus olhos.
"Parece uma forma humana". Ele pensa, encontrando força em seu braço para estender a mão. Quer tocar. Sentir. Ser parte. O que é aquilo? Essa força maravilhosa e, ao mesmo tempo, tão terrível?
"Definitivamente é humano". Ele pode distinguir braços, pernas, tronco e cabeça na forma à sua frente. Aquela cabeça que analisa o braço que lhe foi estendido. Ela o inspeciona com cuidado, voltando-se então para o rosto dele. A figura não tem feições distinguíveis, exceto pelos olhos: Redondos e negros, dois orbes escuros e brilhantes.
-Quem é você?
Essa é a primeira vez que sua voz é capaz de formular palavras desde o despertar na noite anterior. Ele grunhe, tentando falar novamente, mas, agora, a voz não o socorre.
A figura se aproxima. Analisa a mão estendida e, então, olha o rosto dele antes de estender a própria mão para a frente.
O coração pula uma batida.
Mão e mão.
O mundo de Arthur escurece novamente.
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