Em Barcelona, dia 08/08/2014, uma garota de cabelos e olhos marrons se senta num quarto pintado de vermelho, onde há apenas um guarda-roupa embutido e uma cama de casal. Nada mais, nada menos.
─ Por fim um pouco de paz e solidão. ─ Diz ela, conversando sozinha.
Ela abre o seu notebook, e escreve o seguinte:
Escrever sempre foi uma terapia para mim. Gosto de registrar os momentos bons da minha vida, os que me fazem sorrir. Mas registro os ruins também, para entendê-los. Para me conhecer melhor.
Talvez algum dia alguém queira ler o que eu quero contar. Talvez, melhor que isso, alguém sinta empatia. Isso seria maravilhoso, causar essa empatia. Já que por muito tempo me senti muito incompreendida, e sozinha.
Meu nome é Malvina Lynn, sou de origem nipo-brasileira, como você deve ter notado ao ler meu nome. E a minha mãe se chama Eduarda. É estranho começar um escrito falando sobre a nossa mãe, mas isso também tem uma razão. Eu diria que a minha história e a dela estão intimamente conectadas, bem mais do que a de qualquer outra mãe e filha, já que algumas coisas que ela viveu lhe causaram um desordem mental, e este padrão de comportamento me afetou e me converteu no que sou hoje.
A nossa vida juntas começa nos anos noventa, quando ela tinha 17 anos. Numa festa familiar em Minas Gerais ela ficou grávida do Osmar, o seu primo terceiro, dez anos mais velho. Se não lhe parece problemático o suficiente, a minha mãe estava embriagada, e o coito aconteceu num quarto escuro enquanto ela estava dormindo.
Ao chegar em casa, ela notou o botão da calça rebentado e ligou para sua prima Jena, a mesma lhe confirmou o ocorrido. No entanto, Eduarda não contou nada aos meus avós, com medo da reação de ambos.
E então eu nasci, em 1995, após várias ofertas de aborto feitas tanto por meus avôs maternos como paternos, que foram rechaçadas por ela. Eu era um bebê prematuro de sete meses com um pulmão frágil.
Depois do meu nascimento os meus pais conviveram na mesma casa, como um casal. O Osmar nessa época era dono de uma empresa de grãos e tinha terras; sendo por tanto perfeitamente capaz de sustentar uma família. No entanto, meu pai era bastante violento, traía a Eduarda e usava drogas.
A minha mãe tentou voltar para o seio familiar, mas não foi aceita. Sempre a enxergaram como uma adolescente problemática, injustamente. Meus avós lutaram judicialmente por minha guarda, alegando que ela não tinha meios de vida, e ganharam. O meu pai decidiu me abandonar e, curiosamente, teve mais seis filhos, todos sofreram a mesma desgraça que eu: sua indiferença.
Desde aí a minha mãe foi embora para São Paulo, e eu passei a conviver com os meus avós maternos e com meu tio Fábio, um adolescente de 16 anos.
Na capital a minha mãe trabalhou em alguns supermercados, e como modelo, por ser muito bonita. Ela costumava vir no fim de ano com um monte de presentes. Eu a abraçava, a cheirava, a apertava, e logo ficava muito triste quando ela tinha que ir embora.
Eu fui uma criança boba, boa e inocente. Ninguém me explicava nada sobre a vida, e meu tio Fábio costumava me bater por motivos mínimos. Mais tarde eu entendi que se tratava de um psicopata com todos os traços, inclusive ele matava gatos quando era criança. A culpa não era minha. Mas curar essa ferida levou alguns anos, e suas burlas e represálias me fizeram uma garota acanhada.
Em 2002, a Eduarda recebeu uma oferta de trabalho para ser garçonete em Barcelona. Minha mãe ficou muito feliz, já que estava passando por um momento difícil em São Paulo; o aluguel era caro e em alguns dias ela precisou beber água da torneira por não ter o que comer. Os chefes lhe pagariam a passagem de ida; a moradia era de graça; ela só precisava fazer as malas. E o fez. Ela e outra amiga se mandaram juntas para essa aventura.
Ao chegar no "restaurante", se deu conta de que foi enganada. Uma máfia cujos cabeças eram Paulo e Matias confiscaram seu passaporte e lhe disseram que só o devolveriam quando ela pagasse o preço do bilhete da viagem São Paulo ─ Barcelona. Quem diria isto de dois irmãos com nomes bíblicos? O lugar para onde a chamaram para trabalhar, era na verdade um prostíbulo. O que Paulo e Matias fizeram, foi na verdade tráfico de mulheres.
E foi neste lugar onde a minha mãe conheceu o Xavier, o único homem que ela amou na vida. Apesar de que ele era um viciado em cocaína, eu me lembro dele com carinho. Ele me tratava com amor, respeito, e queria que tivéssemos uma relação de pai e filha.
Após três anos juntos eles vieram se casar no Brasil. Eu ainda rememoro este dia lindo, eu tinha 10 anos. Eu chorei muito, emocionada porque finalmente a minha mãe havia encontrado alguém. Ainda por cima eu fui nomeada dama de honra, e este título fez com que eu me sentisse importante, especial e querida. Como se finalmente eu fizesse parte de alguma coisa.
Aí a Eduarda me disse:
─ Você quer vir morar em Barcelona comigo e com o seu padrasto? ─ sorrindo.
Eu apertei a mão da minha avó, franzindo as sobrancelhas.
"Mãe é quem cria", as palavras da senhora ressoavam na minha cabeça, mesmo que ela estivesse muda agora do meu lado.
─ Não. ─ Eu respondi.
Minha mãe chorou amargamente. Neste dia as duas discutiram muito. Eu, claro, não entendia o porquê.
Então Xavier e Eduarda voltaram para Barcelona e compraram uma cachorra chamada July, em homenagem a Julia Roberts, a atriz de Uma Linda Mulher, para me substituir. Não funcionou, óbvio. A minha mãe seguia deprimida por causa da minha ausência.
Quando eu tinha doze anos, os dois vieram com July, e tentaram viver no Brasil. O problema é que o Xavier não estava se adaptando. Ele sofria abstinência de cocaína e, apesar de ser de uma família endinheirada, era maltratado pelos meus avós, já que no Brasil não conseguia encontrar emprego.
Isso causou a primeira crise na relação dos dois. Xavier voltou para Barcelona, minha mãe ficou sem chão. Dos doze aos quatorze, eu a ajudei a acabar o colegial, dando todo o meu apoio para ela, apesar de que ela sempre me tratou de um jeito esquisito, duro e rígido, como se não soubesse amar.
Aos 15, os dois se reconciliaram e eu recebi a segunda proposta para ir embora do Brasil. Eu lembro que eu havia começado o primeiro colegial em Minas Gerais, em fevereiro. Por primeira vez eu me encontrava alegre entre os amigos da escola, pois eu estava começando a amadurecer e a ter mais confiança em mim mesma, então conversava mais com as pessoas.
Apesar disso, algo me dizia que este lugar não era para mim. Eu deveria ir embora para viver o meu sonho de morar em Londres. Veja só, uma criança solitária, viciada em MTV, que passava horas e horas assistindo os vídeo-clips das bandas britânicas de emo-core e pop-indie, o que esperar? Desde os três anos de idade eu queria ser cantora. Apesar de que Barcelona não é Londres, eu mergulhei de cabeça, por ser bem perto. Também estava cansada de apanhar do Fábio.
E talvez finalmente eu pudesse atender aos meus sonhos. Esses delirantes que eu tinha na cabeça sobre pintar o cabelo de azul e ser uma estrela do Rock. Nós fizemos as malas e fugimos, eu, ela e o Xavier, sem nos despedir de ninguém da família, pois eles não me deixariam ir embora.
Quando cheguei em Barcelona, foi tudo diferente. Era a primeira vez que eu convivia com a minha mãe na mesma casa, e foi a primeira vez que a conheci realmente.
Ela era uma doida ciumenta, e como conheceu seu marido no puteiro, ela tinha medo de que ele seguisse frequentando prostíbulos. Então controlava cada passo dele, incluso o seguia e espiava.
Apesar disso, eu passei o ano escolar mais feliz da minha vida. Fiz muitos amigos, e comecei a sair. Eles me ajudavam a aprender o idioma e me tratavam muito bem. Provei álcool e drogas por primeira vez. Já que todos eles faziam a mesma coisa.
Os problemas de ciúme da Eduarda fizeram com que eles se separassem quando eu tinha 16 anos. No mesmo ano o meu avô faleceu. E eu não me despedi deste homem de 72 anos que sempre vivia bêbado no bar da esquina, mas no fim da tarde me trazia chocolate: dois batons pretos e um Laka; e sempre me dizia: "você é minha princesa", "você é inteligente", "você vai se formar, ser doutora, e o vovô o seu recepcionista". Por tanto, no mesmo ano, eu perdi as duas figuras masculinas da minha vida, as únicas que, apesar dos defeitos, foram os que mais se aproximaram da palavra "pai".
Quando a Eduarda se separou do Xavier nós ficamos sem teto por uma semana. Por sorte, ela se reencontrou com uma antiga amiga puta que lhe alugou um apartamento de um quarto por um preço amigável, fazendo "o favor". Eu e a Eduarda havíamos combinado que não tinha problema, que éramos mãe e filha e que podíamos dormir juntas até podermos ter algo melhor. Então fomos morar neste lugar, "enquanto minha mãe buscava trabalho".
Mas ela acabou caindo no caminho que ela já conhecia, o da prostituição, ao só encontrar serviços de meia-jornada com salários medíocres. E neste mundo, ela se reencontrou com o Matias, o mafioso. Os dois começaram a namorar.
Todas as noites ele vinha dormir no nosso apartamento de um quarto. Com o início dessa relação eu fui reclutada para a sala do apartamento, onde eu dormia num colchão que eu mesma achei no lixo e trouxe para casa numa madrugada, a pé, morrendo de vergonha.
Todas as noites eu escutava os dois fodendo. A minha mãe dava uns gritos muito nojentos. Parecia que ela estava sofrendo.
E o mais importante, o Matias começou a bater na minha mãe praticamente todos os dias. Eu sofria muito. Sofria por ela, e sofria de medo. Me sentia desamparada e sozinha.
Foi nessa época que ela parou de ligar para a minha educação. Eu tive que me matricular de Primer de Bachiller sozinha. Fui de colégio em colégio tentando, eles me diziam que era a minha mãe quem deveria me matricular, por eu ser de menor.
Um diretor finalmente teve piedade de mim. Mas este colégio foi horrível. Deveria ser minha cara de poucos amigos, suponho, isso fazia as pessoas se afastarem, quiçá, má vibração.
Eu acabei deixando de ir à aula e comecei a faltar e a faltar. Além disso, a Eduarda demorou dois meses em comprar os meus livros didáticos e eu estava ficando com vergonha da cobrança dos professores e dos olhares maliciosos dos meus companheiros.
Então gastei um ano da minha vida indo todas as manhãs à uma biblioteca pública, escondendo da minha mãe que eu não ia na aula; sem amigos, sem dinheiro para passear, perdida no meu universo, buscando formas para mudar essa situação.
Neste ano eu comecei a investigar sobre reformas e decoração. E encontrei um objetivo genial para minha vida, que nada tinha que ver com o sonho de me dedicar à música: comprar casas em ruínas ─ que tinham um preço ridículo ─ reformá-las e revendê-las. Assim eu poderia conseguir uma margem de benefício do dobro do que houvera gastado. O problema é que eu era de menor. E a autorização de residência que eu tinha nem sequer me permitia trabalhar, ainda que dezesseis fosse a idade legal no país para começar.
Bom, aos dezessete anos, Eduarda e Matias finalmente decidiram mudar para um apartamento com dois quartos. Foi outro dia feliz na minha vida. Ainda me lembro da sensação de me deitar numa cama depois de um ano dormindo no chão.
Me animei tanto que decidi me matricular de novo e acabar o colegial. Foi neste ano que conheci o Marcos, o meu primeiro namorado. Um cozinheiro de 21 anos.
Era ele quem me ajudava com as minhas crises familiares, sempre muito atento e amável. Ele escutava todos os meus problemas. Inclusive, ele comprou um teclado para que eu voltasse a acreditar nos meus sonhos. Sempre que eu estava sozinha em casa, eu mexia nele, e de forma autodidata, aprendi a tocá-lo.
Quando acabei o colegial, aos dezenove, o meu namoro com o Marcos começou a se desgastar. Todos os fins de semana, quando tentávamos estar juntos, eu tinha que voltar para casa bem no meio de um programa ─ um jantar, um passeio, um jogo, o que fosse ─ com medo da minha mãe estar morta.
Ele terminou comigo dizendo que enquanto eu e ela não arrumássemos nossa situação familiar não dava mais para estarmos juntos. O Matias lhe havia ameaçado de morte e tudo, pois como pode-se imaginar, é um machista nojento que se achava e que se acha o meu dono, e dono da minha mãe. Eu aceitei o término da relação, afinal, eu não queria pôr a vida da pessoa que eu amava em risco. Nós seguimos sendo amigos, mas nos víamos cada vez menos. Até que o Marcos morreu de meningite, de repente. E no mesmo ano, a minha mãe ficou grávida do Matias.
Acho que depois de tudo isso, comecei a ficar louca.
Durante a gravidez da minha mãe, eu saía com as minhas amigas do colegial, bebia, me drogava, e pegava vários caras na mesma noite. Transava com uns três garotos diferentes por semana. E não dava e nem dou a mínima. Porque até hoje eu sigo igual.
De um certo modo, o fato de o Marcos ter terminado comigo me fez deixar de acreditar no amor verdadeiro. A vida é um momento passageiro. Ela passa, e vai embora. Então divirta-se.
Você será destruído mais cedo ou mais tarde.
Então por que não se auto-destruir?
Nada tem sentido. Ninguém ama ninguém de verdade. Ninguém acolhe ninguém.
Olha só, está tudo fodido.
E a tendência é a piorar.
***
─ Alô? ─ Digo, atendendo o meu celular.
─ Oi, puta. Sou eu, Elisa. ─ diz a minha amiga, do outro lado.
As duas damos uma gargalhada bem alta.
─ Oi, amiga. O que você está fazendo? ─ Sorrio, a escutando.
─ Estou me matriculando na Escola de Arte. ─ Ela responde.
─ Ué, na Escola de Arte? ─ Pergunto, curiosa. ─ Mas o que é que você pega lá nesse lugar?
─ Eu vou fazer um Ciclo Formativo de Moda antes de ir para a faculdade. Dizem que é altamente recomendável. E você? O que vai fazer da vida, sua louca? Já se decidiu?
─ Não tenho a mínima ideia. ─ Respondo, erguendo uma sobrancelha, e rascando a minha mesa com a ponta da unha.
─ Por que você não vem comigo dar uma olhada? Talvez haja algo por lá que você ache interessante.
─ Hm... ─ murmuro, cínica.
Uma garota deprimida vai ter interesse pelo quê?
─ Vem! Por favor! ─ ela exclama, com o seu jeito adoravelmente convincente. ─ Escuta... ─ Elisa pergunta, me analisando. ─ Você e sua mãe estão bem?
─ Sim... ─ Digo, fraco. ─ Nós já acabamos de mudar para uma casa com dois quartos. Eles brigam todos os dias, mas não é nenhuma novidade. ─ Lhe conto.
─ Ai, ai. Entendi. Meu deus do céu. Não tem jeito mesmo, né? ─ Elisa pergunta, nervosa.
─ Sem chance. ─ Respondo, rindo de leve.
─ Vem comigo, amiga. ─ Ela diz, colocando um tom de voz apenado e suplicante, mimoso. ─ E dá uma olhada na oferta acadêmica.
─ Vou sim, não tenho nada para fazer mesmo. ─ Respondo, descrente.
─ Dizem que nessa Escola de Arte todos os alunos são muito autênticos, excêntricos, gente boa e muito loucos.
─ Ah, é? ─ Pergunto, animada, como se o meu corpo houvesse recobrado a vida.
─ Sim, sim.
Elisa ri, maliciosamente.
E neste dia, ainda nas férias de verão, eu fui com a minha melhor amiga nesta Escola de Arte. O lugar tem umas instalações mais do que aceitáveis, se comparado com as escolas públicas brasileiras. Não chega a ser um Palácio Real, mas é bem bonito e cumpre sua função.
Há várias salas de aulas, há murais onde os alunos expõe seus trabalhos, há armários, e há uma oferta formativa razoavelmente extensa. Dá para estudar Escultura, Música, Fotografia, Desenho Gráfico, Ilustração, Confecção de Vestuário e Arquitetura Efêmera.
A Elisa, que é nascida aqui, me explicou que estamos num país onde, culturalmente, os jovens saem de casa no primeiro ano da Faculdade para morar sozinhos, tradicionalmente indo para uma cidade diferente.
Os jovens de classe alta têm suas despesas arcadas por seus pais. Como não? Já os de classe média possuem outros métodos. Muitos decidem fazer um Ciclo Formativo de Grau Superior primeiro. Desta forma é possível ser Técnico em algo, ter uma profissão, para poder trabalhar e estudar ao mesmo tempo ao começar a Faculdade; pagando as próprias contas e despesas.
Que bom que ela me explicou, já que não tem ninguém em casa com juízo para me orientar.
Acabei me matriculando em Desenho Gráfico, na Escola de Arte de Barcelona.
Não que este seja o sonho da minha vida.
Eu estou bem perdida, nem sei o que quero dela.
Já sou velha demais para entrar no Conservatório da grande e sumptuosa capital de Catalunha.
Eu estou indo para socializar mesmo.
Preciso de pessoas boas ao meu redor, pessoas além da minha melhor amiga. Mais pessoas. Mais família.
Pessoas assim, desse estilo que a Elisa disse que havia.
Mal posso esperar.